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Entrevista: A relação entre o sujeito e a verdade

Publicado: Segunda, 04 de Julho de 2016, 18h48 | Última atualização em Sexta, 26 de Agosto de 2016, 15h20 | Acessos: 2715

Ciclo de eventos festeja obras do filósofo Michel Foucault

 Por Walter Pinto  Foto: Adolfo Lemos

As palavras e as coisas, livro do filósofo Michel Foucault, está completando 50 anos. Sua importância para compreensão de temas atuais e transgressores vem sendo ressaltada por meio de eventos realizados em diferentes partes do mundo. Em Belém, cidade que, por duas vezes, acolheu o filósofo francês, uma programação está sendo realizada sob a coordenação do filósofo Ernani Chaves. Trata-se também de uma oportunidade para homenagear o pioneirismo do filósofo paraense Benedito Nunes, que, em 1968, publicou Arqueologia da arqueologia, o primeiro artigo brasileiro sobre o livro de Foucault. Além de várias atividades que incluem eventos em escolas públicas, haverá um colóquio internacional no final do ano e a participação de uma equipe de professores e pós-graduandos da UFPA num colóquio em Madri. Na entrevista abaixo, Ernani Chaves ressalta a atualidade do filósofo francês, lembra a sua passagem por Belém e destaca o papel fundamental de Benedito Nunes como intérprete de Foucault.

Foucault e a sociedade

A contribuição de Foucault para a compreensão do mundo é enorme e imensurável. Isso se deve, em grande parte, ao fato de ele ter mobilizado o pensamento filosófico para questões que sempre estiveram presentes no horizonte filosófico, mas nunca tinham se tornado objeto específico de investigação, temas, à primeira vista, não filosóficos, como a loucura, a sexualidade, a prisão, o hospital. A singularidade de Foucault está em mostrar, o tempo todo, que o estudo desses objetos está relacionado à pergunta mais importante da Filosofia, a pergunta pela verdade, pela razão, qual a relação entre o sujeito e a verdade. Mas Foucault fez isso num horizonte muito específico, começando por questionar o pensamento tradicional, aquilo que chamamos metafísica. Ele nos mostrou que nela falta uma coisa muito importante: a historicidade. Então, baseado em uma referência fundamental a Nietzsche mas também a Marx, ele fez uma investigação de caráter histórico, cujo modo foi criticado pelos historiadores profissionais, para mostrar que o sujeito possui uma história. Para nós, da Filosofia, o que importa é a tentativa de historicizar aquilo que parecia não historicizado. O objetivo de Foucault foi encontrar instrumentos e armas para entender o nosso presente, aquilo que está acontecendo hoje. Ao historicizar e desnaturalizar questões como loucura, sexualidade e prisão, ele deu enorme contribuição a todos os movimentos – o antimanicomial, o feminista, o LGBT, entre outros, assim como à crítica ao sistema carcerário, além de contribuir com o estudo da História. A contribuição de Foucault, baseada no conceito de biopolítica, faz dele um interlocutor fundamental.

Foucault em Belém

Foucault esteve em Belém duas vezes. A primeira, em 1973, como turista, para conhecer a Amazônia, logo depois da conferência no Rio de Janeiro. A segunda, em novembro de 1976. A impressão que teve da cidade foi maravilhosa, conforme escreveu a Daniel Defert, seu companheiro. Isso está registrado. No ano passado, no dia 1º de maio, encontrei Daniel, em Paris. Tivemos uma longa conversa-entrevista. Ele ficou muito impressionado com o fato de eu ter conhecido Foucault pessoalmente. Isso aconteceu quando ele visitou Belém, em 1976. Eu era estudante de Filosofia e trabalhei como monitor nas conferências que ministrou no antigo auditório do Centro de Letras e Artes da UFPA. Era o responsável pelas listas de presença, que a Polícia Federal requisitou à Reitoria, mas o professor Benedito Nunes disse ter queimado. Para a PF, a presença na conferência era um indicativo de subversão. 1976 foi um ano em que Foucault foi muito vigiado pelos órgãos de segurança. A ficha dele no SNI já foi publicada e tem até estudo acadêmico sobre ela. Meus colegas do Seminário Foucault, um seminário internacional localizado em Madri, também ficaram surpresos por eu ter conhecido Foucault pessoalmente. Assim como eu, eram todos jovens à época.


Encontro com Defert

Daniel Defert encontrou-se comigo em Paris, em um lugar que frequentava com Foucault, perto da casa em que eu estava morando. Depois, fez um passeio comigo pela cidade. Levou-me, principalmente, aos lugares frequentados por ambos. Foi um momento maravilhoso. Durante nossa conversa, mostrei-lhe as fotografias de Foucault em Belém e lhe falei de Soure, no Marajó. Daniel imediatamente se emocionou, lembrou que Foucault havia adorado o Marajó. Daniel não estava com ele na viagem, porque ficou em Manaus, com uma amiga. Foucault foi para o Marajó na companhia do diretor da Aliança Francesa. O reencontro aconteceu em Belém, depois das conferências no campus da UFPA. Recentemente, encontrei Roberto Machado, grande intérprete e amigo de Foucault, num colóquio em São Luís do Maranhão. Roberto voltou a dizer que as cidades que Foucault mais adorou no Brasil foram Rio, Salvador e Belém.

Pioneirismo de Benedito

No final de 1966, perseguido pela Ditadura Militar, o professor Benedito Nunes, diretor do Serviço de Teatro da UFPA, pensou sair do Brasil e fazer o doutorado na França, mas encontrou grande dificuldade para tirar o passaporte. Foi o reitor Silveira Neto quem o ajudou. Silveira Neto era uma figura ambígua. Por um lado, era alguém muito próximo da Ditadura, mas, por outro, fez coisas importantes, como ajudar a tirar Benedito Nunes do Brasil naquele momento delicado.


Em outubro de 1967, finalmente, Benedito Nunes chegou a Paris, próximo ao maio de 68 e em meio ao grande sucesso da publicação de As palavras e as coisas, por Foucault. Uma enquete feita pelo Jornal Nouvel Observateur havia apontado aquele livro como o mais vendido do ano. A manchete “Foucault como pãezinhos” dizia muito da receptividade daquele livro de Filosofia, de 600 páginas. Lembrei-me dessa história em texto recente. Foi como se o professor Benedito tivesse saído para comprar um pãozinho e voltado com As palavras e as coisas, livro que o impressionou muito. Logo escreveu o primeiro artigo no Brasil sobre o livro de Foucault, o qual se chamou Arqueologia da arqueologia, publicado em quatro partes, no suplemento literário do Jornal O Estado de São Paulo, entre outubro e novembro de 1968, às portas do AI-5, e, depois, em 1969, na primeira edição do Dorso do Tigre.


Então, no momento em que o mundo inteiro festeja os 50 anos de As Palavras e as coisas, a importância da crítica pioneira de Benedito Nunes deve ser ressaltada no Brasil, e penso que o dever de mostrar a importância daquele texto é meu. Dever, no sentido kantiano da palavra, de observar o que é interessante, o que é original e o que envelheceu nele, pensando sempre na época em que foi produzido. O professor Benedito adorava As palavras e as coisas. No prefácio que escreveu para o meu livro Foucault e a Psicanálise, ele definiu o livro de Foucault como de rara beleza de estilo. Hoje, reconheço que As palavras e as coisas é um livro fundamental, mas, durante o mestrado, pareceu-me monstruoso, enorme, difícil demais. Mas foi o livro que eu li, indicado pelo professor Benedito, em 1980. Ele me, disse “você vai gostar de Foucault”. O professor Benedito era um cara assim, aceitou e acolheu todas as minhas transgressões. Sempre tivemos uma conversa muito franca um com o outro, mesmo quando eu tinha 18, 19 anos. Era uma conversa que tinha o respeito pela figura, pela autoridade, mas, ao mesmo tempo, tinha algo de muito espontâneo de ambas as partes.

Foucault, Heidegger e Benedito

O que pegou o professor nas Palavras e as coisas foi o fato de ter encontrado lá os traços de Heidegger, que, já nessa época, o tinha escolhido como a sua grande referência filosófica. Em Arqueologia da arqueologia, ele procura mostrar que Heidegger é fundamental e, de certa maneira, decisivo para entender o livro de Foucault. Publicar isso no Brasil de 1968/69 não fazia o menor sentido para os brasileiros. Pouquíssimos tinham lido As palavras e as coisas. Foucault não tinha o lugar que ele tem hoje, quando pode ser visto em toda a sua grandiosidade, e a grandiosidade de um texto na Filosofia não está ligada, apenas, àquilo que permanece dele, de interessante, mas àquilo que ele coloca como problema. Então a relação entre Foucault e Heidegger é um problema que permanece para os intérpretes, ainda hoje. Benedito Nunes leu o livro, viu de imediato o problema e apontou uma solução.

Ed.131 - Junho e Julho de 2016

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