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A cura e a magia da floresta

Publicado: Terça, 17 de Outubro de 2017, 19h34 | Última atualização em Terça, 17 de Outubro de 2017, 19h36 | Acessos: 19305

Pesquisa revela o conhecimento tradicional sobre a biodiversidade

imagem sem descrição.

Por Hojo Rodrigues Foto Acervo do Pesquisador

A relação entre o ser humano e a biodiversidade nem sempre ocorre em harmonia. No entanto a dissertação A cura que vem da natureza: conhecimentos, práticas e apreensões da biodiversidade por beiradeiros da estação ecológica Terra do Meio, Amazônia brasileira, apresentada pela etnobióloga Ana Débora da Silva Lopes, revela que existem populações tradicionais que vivem na floresta há muitas gerações e não destroem a natureza. Defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/ UFPA), a pesquisa foi orientada pelo professor Flávio Bezerra Barros.

Filha de agricultor ribeirinho, Débora Lopes sempre gostou dos rios e, quando foi cursar a Graduação em Ciências Biológicas no município de Altamira, no sudoeste do Pará, conheceu as áreas da Etnobiologia e da Etnoecologia, que estudam as relações que se estabelecem entre os grupos de seres humanos e a natureza. O trabalho evidencia a existência de outros saberes tão importantes quanto os desenvolvidos nas universidades, além de tornar visível a influência da comunidade local na conservação da biodiversidade e de seus conhecimentos tradicionais.

Com tantos avanços científicos e tecnológicos na sociedade atual, nem sempre é dada importância a esses conhecimentos. “A ciência ocidental ainda está muito ‘fechada’. Enquanto nós não valorizamos o conhecimento tradicional como deveríamos, para os povos tradicionais, esse conhecimento tem grande relevância”, destaca a pesquisadora.

Ao focar sua pesquisa no uso de animais para práticas medicinais e mágico-religiosas, Débora Lopes precisou ir até a Estação Ecológica Terra do Meio (EETM), no município de Altamira, para conhecer as relações dos “beiradeiros” com os animais, quais e como são utilizados para fazer os remédios e a simbologia em torno dos animais, que vão além de recursos alimentares e medicinais.

Beiradeiros são aqueles que nasceram e se criaram no beiradão

Segundo a etnobióloga, beiradeiros é como se autodeclaram as pessoas que residem às margens dos rios da região pesquisada. É muito comum pesquisadores e outros estudiosos escreverem o termo “ribeirinho” para identificar essas pessoas em pesquisas e documentários produzidos nessas localidades. Entretanto uma das preocupações de Débora era saber como eles se autoidentificavam. “Eles dizem que são beiradeiros, pois nasceram e se criaram no beiradão, que é a região da beira dos rios, e acrescentavam que ribeirinho é o que as pessoas de fora disseram que eles eram”, esclarece Débora Lopes.

Por meio da convivência com os beiradeiros e das entrevistas com o uso de um questionário semiestruturado – por meio do qual organizava as informações necessárias para sua dissertação – a etnobióloga fez um levantamento de 60 etnoespécies utilizadas para tratar 57 tipos de problemas de saúde, que vão desde a indigestão até a disfunção erétil. As espécies foram classificadas em seis grupos: invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos, sendo este último o grupo dos animais mais usados como recurso medicinal.

Débora Lopes usou o termo “etnoespécies” por não ser a classificação científico-acadêmica, mas como os beiradeiros denominam os animais. “Às vezes é a mesma espécie, mas eles chamam com nomes diferentes, por exemplo, a galinha (G. gallus domesticus), sua banha serve para um remédio, enquanto o pintinho, que é o filhote da galinha, serve para outro remédio. Então, na sumarização, eu contei como duas etnoespécies”, explica.

Os animais mais usados para tratar problemas de saúde são: a anta (10 problemas), seguida da paca (7 problemas), da sucuri e do mutum fava (6 problemas), da galinha e do tatu (5 problemas) e do jabuti (4 problemas). Entre as principais mazelas, estão pneumonia, derrame cerebral, reumatismo, dor de ouvido e  impotência sexual.

Aquilo que não é utilizado na alimentação é usado como remédio

Quarenta matérias-primas foram citadas no trabalho, como dentes, vísceras, secreções, pelos e banha (gordura). É importante saber que as partes usadas para fazer os remédios são as partes não utilizadas na alimentação, não havendo necessidade de matar um animal apenas para a retirada de um osso para remédio, por exemplo. A banha é o produto mais citado pelos beiradeiros, servindo para tratar vinte e três tipos de problemas de saúde.

Os produtos retirados da anta (Tapirus terrestris) são destinados ao tratamento de várias doenças, como bócio, acidente vascular cerebral e má digestão. A pesquisadora diz que ficou surpresa com o simbolismo que envolve o preparo dos zooterápicos, como o modo de preparo do chá do pênis da anta, utilizado no tratamento da disfunção erétil. “O órgão deve ser raspado sempre do tronco para a extremidade. Tudo pensado na virilidade, na visão que nós temos sobre a ereção”, explica Débora Lopes.

A observação do comportamento animal e o imaginário popular caminham juntos para que os remédios tenham o efeito desejado. Débora conta que a mancha preta existente no pedúnculo caudal do tucunaré (Cichla melaniae) é retirada e torrada, a fim de fabricar um polvilho para ser colocado em ferimentos causados por arraias (Potamotrygon spp). Mas, o que isso tem a ver? Segundo os beiradeiros, a arraia ‘namora’ o tucunaré, eles andam juntos. Então, se a arraia não faz mal ao peixe, ele é indicado para tratar a ferroada dela. A mesma ideia é usada para o osso da capivara (H. hydrochaeris), empregado no tratamento de reumatismo. Para os beiradeiros, se a capivara fica o tempo todo na água, é porque ela não sofre de reumatismo.

Algumas etnoespécies são utilizadas como amuletos para obter sorte na caça, na pesca, no lar e nos negócios. É o aspecto mágico-religioso difundido pelos beiradeiros. Nesse contexto, foram citadas dez etnoespécies, entre elas a jiboia branca (Boa constrictor), cuja lágrima traz sorte. “Eu perguntei como eles faziam para coletar a lágrima da jiboia, e eles disseram que o animal deveria ser cutucado com um pedaço de pau, até ficar bem bravo. Assim a lágrima escorre e é coletada”, conta a pesquisadora.

Plano de Manejo da Terra do Meio não cita a caça de subsistência

Entre os 22 interlocutores entrevistados, a pesquisadora observou que as pessoas acima de 43 anos conhecem mais espécies medicinais, enquanto as mais jovens, entre 18 e 43 anos, conhecem mais espécies raras. Quando comparado o conhecimento tradicional entre os gêneros, as mulheres conhecem muito mais espécies e falaram muito mais sobre os usos dos remédios do que os homens. Isso se deve ao fato de, normalmente, serem elas as responsáveis pela produção e pelo armazenamento dos zooterápicos.

Débora Lopes, que, em cada comunidade, ficava uma semana e, às vezes, cerca de quinze dias com cada família, hoje, preocupa-se, pois nenhum trecho do Plano de Manejo da Estação Ecológica Terra do Meio diz que a caça de subsistência é permitida. “Os beiradeiros já passaram por fiscalizações bem truculentas por parte de fiscais do ICMBio e do IBAMA, circunstâncias em que suas casas foram invadidas e armas de caça foram recolhidas. Essas pessoas não podem ser tratadas como criminosas, pois a caça faz parte do modo de vida, do bem viver delas”, frisa.

A relação entre a biodiversidade e o número reduzido de pessoas residindo numa área de grande extensão territorial, onde as famílias reproduzem um modo de vida diferenciado, fez com que esse território, ocupado secularmente, continue conservado. Assim percebemos que as comunidades que habitam a estação ecológica deveriam ser vistas como protagonistas e fortes aliadas no processo de gestão do local.

Ed.139 - Outubro e Novembro de 2017

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