Ir direto para menu de acessibilidade.

GTranslate

Portuguese English Spanish

Opções de acessibilidade

Início do conteúdo da página

Opinião

Escrito por Beira do Rio | Publicado: Terça, 13 de Dezembro de 2022, 17h14 | Última atualização em Terça, 03 de Janeiro de 2023, 16h09 | Acessos: 1179

Narrativas, memórias e devoção

Por: Adison Cesar Santos. Foto: Acervo pessoal

Marcada por dias festivos, multidão de devotos, reencontros, rezas, danças e alegria, a festividade de São Benedito de Bragança, no nordeste paraense, ocorrida tradicionalmente entre os dias 18 e 26 de dezembro, foi substituída pelo silêncio em 2020. Nos dias 25 e 26, no ápice da festividade, as sonoridades da mazurca e do retumbão, ritmos característicos da manifestação, foram caladas. As danças de marujos em forma de agradecimento ao santo e as aglomerações de turistas e devotos ao redor do barracão da Marujada foram trocadas pelo vazio do isolamento social gerado pela pandemia da covid-19.

O Museu da Marujada, palco das apresentações de danças, manteve-se de portas fechadas. A imagem do local em nada lembrava as festas do passado. Não houve música, não houve danças nem o tradicional leilão ao lado da igreja. Não houve aglomeração de marujos e marujas caminhando com seus trajes oficiais nem ambulantes vendendo recordações da festa. É como se a alegria habitual da festividade estivesse suspensa, distante do seu local de origem.

Com base no cenário descrito acima, desenvolvi a dissertação Foliões mensageiros: memórias e narrativas das comitivas de esmolação do Glorioso São Benedito de Bragança/PA. A pesquisa, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCom/UFPA), analisou as comitivas de esmolação com base nas memórias e narrativas inseridas na manifestação.

As comitivas ou grupos de foliões se caracterizam por três comissões formadas por devotos do santo preto, a maioria do gênero masculino, os quais saem, anualmente, entre final de abril e início de maio, da cidade de Bragança, distante 210 km de Belém, para percorrer parte da região bragantina, levando as imagens peregrinas do santo, de casa em casa, angariando donativos para a festa de São Benedito, em dezembro.

Os grupos são denominados comitivas de “São Benedito da Colônia”, “São Benedito dos Campos” e “São Benedito da Praia”, cada um deles responsável por percorrer a sua área geográfica específica. Vale destacar que o fato de essas comitivas saírem da cidade nos meses de abril e maio tem um significado. É durante esse período que as águas começam a baixar; e o índice de chuvas, a diminuir na região, facilitando, assim, a visita dos foliões às casas dos devotos, ou seja, toda a peregrinação das esmolações é realizada no verão amazônico.

A dissertação mostrou que as histórias de São Benedito formam os emaranhados das narrativas que vão ligando promesseiros, encarregados e todos os devotos do santo às festividades. Durante a investigação, foi possível perceber que as narrativas dos devotos carregam a marca de uma territorialidade que vai além do espaço geográfico. Esses discursos, atravessados pelos rituais de devoção, garantem a identidade desses grupos por uma rede estável de relações entre devotos e foliões.

Ao longo da pesquisa, também foi possível identificar o quanto a pandemia da covid-19 alterou os sentimentos e comportamentos de devotos e foliões que, pela primeira vez na vida, não puderam receber o santo nem sair com a imagem nas ruas na tradicional caminhada dos grupos de esmolação. Em todos os relatos ouvidos durante a investigação, que coincidiu com a interrupção das comitivas, em razão das restrições das autoridades sanitárias, os sujeitos investigados descreveram sentimentos de tristeza, angústia e incertezas quanto ao retorno do ritual de esmolação.

É válido destacar que a interrupção inédita dos grupos de esmolação, em mais de 200 anos de festividade, também afetou os produtores do ritual em aspectos diferentes. No caso dos foliões, os sentimentos de frustração e impotência em relação ao momento atípico tiveram maior intensidade em virtude da condição de vulnerabilidade social vivida por eles.
Também foi possível compreender que as narrativas compartilhadas por devotos e foliões ajudam a reverberar os discursos e as práticas de apropriação de São Benedito pelos devotos bragantinos. Seja por meio das experiências de agradecimento por uma graça alcançada, seja por meio de relatos de humanização do santo, essas histórias marcam as memórias e o imaginário da população, reafirmando-se a cada novo ciclo da festividade.

Adison Cesar Santos – jornalista, doutorando em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCom/UFPA). Atualmente, realiza consultoria comunicação ambiental para o Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), em Nazaré Paulista/SP. Desenvolve pesquisas nas áreas de cultura, narrativas, meio ambiente e comunidades tradicionais. E-mail: adisoncf@gmail.com

Beira do Rio edição 165

Fim do conteúdo da página