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Dom e experiência: o saber-fazer das parteiras

Publicado: Terça, 15 de Julho de 2025, 19h18 | Última atualização em Terça, 15 de Julho de 2025, 19h27 | Acessos: 10

Elas são garantia de atendimento e cuidado em Fernandes Belo (PA)

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Por Gabriela Cardoso |Rafael Henrique (Pexels)

Murtinha tinha apenas seis anos quando ouviu o chamado para ser parteira. Com os ouvidos colados na porta do quarto de seus pais, a menina escutava os gritos da mãe grávida.  Os gritos eram devido às dores provocadas pelas contrações que precedem o rompimento do saco amniótico - a bolsa que, até então, protegia o irmão de Murtinha no útero materno.

Mesmo sem a permissão do pai para entrar no cômodo, pois, segundo ele, “um parto não era coisa pra criança ver”, a garota encontrou um jeito de ajudá-los. “Levanta ela do chão”, ordenava Murtinha do lado de fora, “deixa ela passar um tempinho em pé”, “agora dá um suculão na cintura dela que ela vai ter o filho”. As instruções saíam fácil, e na voz da menina, a segurança de uma parteira experiente. Finalmente, Murtinha ouviu a bolsa estourar, deitaram a mãe no chão e o bebê nasceu. Já se passaram mais de 60 anos desde então. Hoje Murtinha é uma senhora de 72 anos.

A parteira, nascida e criada em Fernandes Belo, vila do município de Viseu (PA), acumula mais de 2.500 partos, realizados em cinco décadas de ofício, e é uma das auxiliares de parto mais respeitadas do lugar. Ela, Cheiro de Jirau, de 61 anos, e Barbatimão, de 56 anos, são as três protagonistas da dissertação de Neidivaldo Santana Cruz, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia (PPLSA), Campus Bragrança, cujo trabalho buscou analisar a representação social e as múltiplas vozes das parteiras tradicionais de sua cidade natal, no nordeste do estado.

Para preservar as identidades das suas interlocutoras, o pesquisador não utilizou seus nomes reais. Murtinha, Cheiro de Jirau e Barbatimão são codinomes e fazem referência aos vocábulos mais evocados no momento das entrevistas com cada uma, explica Neidivaldo Cruz.

Entre os saberes tradicional e científico

Neidivaldo Santana Cruz também é formado em Enfermagem e atua na área. Esse fato acrescentou uma nova camada de significados à sua investigação. “A minha formação acadêmica em Enfermagem é hospitalar, envolve equipamentos, procedimentos técnicos e suporte de uma equipe. No saber-fazer das parteiras, são elas com seus ritos e rituais para o partejar em qualquer condição: uma cama, uma rede, um chão de um quarto coberto por lençóis ou esteiras confeccionadas com a palha natural de palmeiras”, explica.

Para o pesquisador adentrar no mundo das parteiras tradicionais, foi necessário ir além de suas experiências prévias, embasadas no conhecimento científico. Neidivaldo adquiriu novos saberes com as relações geracionais estabelecidas com as mulheres da comunidade. 

De acordo com o autor do estudo, parteiras como Murtinha, Cheiro de Jirau e Barbatimão cumprem um papel fundamental em suas comunidades. Isso porque, nas comunidades tradicionais da Amazônia, sobretudo aquelas consideradas de “difícil acesso”, o nascimento ainda está relacionado ao espaço doméstico.

Em Fernandes Belo, por exemplo, antes da transformação dos postos de saúde em Unidades Básicas de Saúde (UBS), a presença de médicos e enfermeiros era bastante rara. Nessa época, ainda nos anos 1990, as parteiras Murtinha e Cheiro de Jirau chegavam a realizar uma média de três partos ao dia.

Ainda hoje permanece a confiança da população no trabalho das parteiras e a procura das gestantes por seus serviços. É comum o acompanhamento das gestantes a cada 15 ou 30 dias, tanto durante a gravidez quanto no puerpério, isto é, após o parto, mesmo daquelas que optam pela realização do pré-natal na UBS.

Neidivaldo explica em sua dissertação que esse reconhecimento popular desafia a lógica da sociedade ocidental bastante presente no campo da saúde, segundo a qual, as ideias de modernidade e tradição se opõem. Para quem vive nas comunidades, “tradição” não é sinônimo de atraso, mas um elo com o passado. A tradição é a manifestação da ancestralidade que alicerça as identidades. Sem ela, Fernandes Belo não existiria, assim como outras tantas comunidades amazônidas.

Solidariedade e reconhecimento movem as parteiras

“As narrativas [das parteiras] mostram um saber-fazer constituído pela observação e experimentações cotidianas. Há, entre elas, um sentimento de pertença e de solidariedade ao disponibilizarem seu tempo para atender a parturientes sem receber nada em troca, a não ser o reconhecimento da comunidade”, explica Neidivaldo Santana Cruz.

Essas mulheres, além de parteiras, também se definem como trabalhadoras rurais, mães, donas de casa, casadas e viúvas, contam que seus conhecimentos são “sussurrados em seus ouvidos”. Uma delas, a Cheiro de Jirau, afirma estar sempre acompanhada de uma entidade (cabocla Mariana) que a auxilia durante os partos. Em suas narrativas, Cheiro de Jirau afirma que  a vocação para ser parteira também é um “dom”, um “chamado” que vem acompanhado de obrigações para com a sua comunidade.

Fato é que, após tantos anos e inúmeros partos realizados, nunca foi perdida uma vida sequer nas mãos das parteiras. Por isso o pesquisador dá ênfase às relações delas com a natureza, com seus saberes sobre cura e com suas cosmovisões. Nesse sentido, as parteiras tradicionais são também “conselheiras, curadoras da família e dos necessitados” e, sobretudo, “detentoras de um saber essencial para a sobrevivência de suas comunidades”. Esse saber-fazer envolve, por exemplo, conhecer a posição da criança e o tempo para movimentá-la na barriga da mãe, o que significa um entendimento sobre massagens e plantas medicinais - como as cultivadas no quintal da casa de Murtinha (alfazema, alecrim, pimenta etc.).

Viabilizar o reconhecimento das parteiras como agentes públicos da saúde sempre foi o maior objetivo de Neidivaldo: “Com os resultados da pesquisa, o Estado pode elaborar políticas públicas que reconheçam a importância das parteiras em comunidades distantes de Unidades Básicas de Saúde ou mesmo hospitalar”.

Em um país como o Brasil, que, entre outros recordes, detém a posição de segundo maior número de cesáreas no mundo (Ministério da Saúde) e onde cerca de 45% das mulheres são vítimas de violência obstétrica na rede pública (Fiocruz), valorizar o ofício de parteiras tradicionais como Murtinha, Cheiro de Jirau e Barbatimão parece um caminho viável para garantir a saúde das mulheres em muitos territórios amazônicos.

Sobre a pesquisa: A dissertação A Representação Social e as Múltiplas Vozes das Parteiras de Comunidades Tradicionais do Nordeste do Pará, Amazônia Brasileira foi defendida por Neidivaldo Santana Cruz, em 2024, no Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia (PPLSA), Campus Bragança, com orientação da professora Joana d’Arc de Vasconcelos Neves e coorientação do professor Francisco Pereira de Oliveira.

Beira do Rio edição 175 - Junho, Julho e Agosto 

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