Ir direto para menu de acessibilidade.

GTranslate

Portuguese English Spanish

Opções de acessibilidade

Página inicial > Exclusivo > 2020 > 155 - junho, julho e agosto > Exclusivo Online > A missão dos curadores das Ilhas de Abaetetuba
Início do conteúdo da página

A missão dos curadores das Ilhas de Abaetetuba

Publicado: Sexta, 14 de Agosto de 2020, 20h56 | Última atualização em Sexta, 14 de Agosto de 2020, 20h56 | Acessos: 1943

Pesquisa revela histórias de vida marcadas pelo medo e preconceito

Estudo foi realizado nas Ilhas Urubueua e Paruru, em Abaetetuba
imagem sem descrição.

Por Adrielly Araújo Foto Acervo da Pesquisa

Procurando entender a relação das atividades que curandeiros paraenses estabelecem com a natureza e com a comunidade em que vivem, a pesquisadora Lucielma Lobato Silva desenvolveu um estudo nas Ilhas Urubueua e Paruru, no munícipio de Abaetetuba. A autora procurou saber como ocorrem as práticas de curandeiria em uma região onde poucos trabalhos se inclinam para conhecer esse fenômeno, almejando não perder de vista as histórias de vida e a memória de todos os envolvidos.

Apresentado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/IFCH), o estudo intitulado A cura que vem dos rios e das matas: um estudo sobre a curandeiria nas Ilhas de Abaetetuba-Pará teve orientação do professor Flávio Bezerra Barros e coorientação da professora Edna Alencar.

De acordo com a autora, a curandeiria é um sistema religioso e espiritual que se utiliza dos curadores (pessoas “pré-determinadas”), dos elementos da natureza e dos encantados (caboclos e guias) para realizar curas. A pesquisa foi desenvolvida em duas comunidades ribeirinhas no munícipio de Abaetetuba. Para tanto, Lucielma Lobato passou cerca de seis meses em cada comunidade, convivendo com os curandeiros dona Neca e seu Orivaldo, seus familiares e com as pessoas tratadas por eles.

“Meu objetivo foi conhecer e registrar os saberes e técnicas utilizadas por esses agentes de cura”, revela a antropóloga.  Lucielma Lobato explica que as principais práticas utilizadas pelos curandeiros envolvem entidades extra-humanas, seja com incorporação de algum guia espiritual, caso de dona Neca; seja sob a influência desses guias, no caso de seu Orivaldo. Ambos retiram da natureza ervas (para banhos e remédios), pedras, amuletos, perfumes e incensos que usam para renovar ou atrair boas energias.

Choro no ventre materno é o primeiro sinal

Dona Neca e seu Orivaldo foram preparados para suas vidas na curandeiria desde muito jovens e passaram por momentos difíceis em suas preparações. Os curandeiros são predestinados quando choram no ventre materno. Assim, adquirem o dom e são escolhidos pela natureza e pelos encantados, o que lhes confere poder, reconhecimento e confiança.

De acordo com seu Orivaldo, as suas memórias mais antigas das manifestações de mediunidade são relatos de uma tia paterna, que dizia tê-lo escutado chorar no ventre da mãe, assustando quem estava por perto. Aos 12 anos, seu Orivaldo tinha visões com pessoas mortas e ensanguentadas, e começou a ter incorporações. Quando isso acontecia, seu pai o levava para ser bento, e os mais experientes diziam que ele seria um grande curandeiro, o que contrariava o pai e gerava um grande sofrimento para o filho.

A vergonha e o medo foram as razões que fizeram a família não aceitar sua mediunidade. Mas, aos 15 anos, as visões ficaram mais frequentes; e as incorporações, mais fortes. Por 17 dias seguidos, os caboclos entraram e saíram do corpo do jovem  Orivaldo, que não bebia, não comia e tinha acessos de raiva. Os encantados exigiam que a família aceitasse sua mediunidade, mas eles resistiam. Depois disso, seu pai decidiu procurar quem pudesse ajudar Orivaldo a tornar-se um curador.

O choro no ventre da mãe também foi o primeiro registro de mediunidade de dona Neca. Próximo ao seu nascimento, os pais visitaram um mestre curador que lhes disse para não terem medo, pois a criança seria muito importante para a comunidade. 

Durante a adolescência, dona Neca teve incorporações e acessos de raiva em público, o que fez com que ela se zangasse e desejasse ser “normal”. Os pais levaram-na a um curador com a promessa de acabar com o seu dom e afastar as entidades. O trabalho custou caro, e não adiantou. Dona Neca passou a adoecer e a incorporar com mais frequência. Ela relembra esse momento como o mais difícil de sua vida, quando, enfim, aceitou o seu destino na curandeiria.

O processo de feitura em curador ocorre de duas maneiras: o ritual de “mortalhação”, realizado por um curandeiro experiente; e o ritual pelo meio ambiente, quando a pessoa é levada pelos seres encantados para o fundo do rio, como foi feito com dona Neca, ou para a mata, como foi com seu Orivaldo. De acordo com Lucielma Lobato, a mortalhação é um ritual complexo, feito por um curador em um indivíduo que está sendo iniciado. Envolve diversas etapas, nas quais a pessoa morre e renasce, mas os detalhes que envolvem cada etapa desse processo não foram revelados durante a pesquisa.

Tempo diferencia “problemas” de “doenças”

Dona Neca procura classificar as queixas que chegam a sua casa baseada na noção de tempo: aquilo que pode ser resolvido rapidamente é denominado “problema”, enquanto o que leva mais tempo e há maior gasto de energia é denominado “doença”. As queixas mais frequentes vão desde infecção urinária, verminoses, epilepsia e depressão até assombro de boto, quebranto, mau-olhado e inveja. Cada caso tem o seu próprio tratamento e o encantado mais competente para tratá-lo.

Já os problemas de natureza física e espiritual de que o seu Orivaldo mais trata vão desde insônia, virose, dor de dente e anemia até bruxaria, azar, agoiro e encosto do mal. A forma de tratamento e os caboclos que o influenciam na cura (diferentemente dos da dona Neca, que os incorpora) são específicos para cada doença, como o guia Caboclo Guará, que afasta espírito do mal; e a Mãe Baiana, que desfaz despachos de feitiço e bruxarias. Lucielma Lobato esclarece que não teve acesso a todas as informações sobre doenças e formas de tratamento.

Por fim, a pesquisadora lamenta o preconceito com que são tratadas as religiões de matriz africana no Brasil e afirma que, com a curandeiria, não é diferente. Em diversos casos, as pessoas que buscavam auxílio com os curandeiros estavam preocupadas em não serem vistas, pois achavam a situação “vergonhosa”. “Entre os curadores, percebemos o medo do preconceito, uma vez que passaram por diversos problemas físicos e espirituais antes de aceitarem suas vocações como curadores”, conclui Lucielma Lobato.

Ed.155 - Jun/Jul/Ago de 2020

Adicionar comentário

Todos os comentários estão sujeitos à aprovação prévia


Código de segurança
Atualizar

Fim do conteúdo da página