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O que falam os rios da Amazônia

Escrito por Edmê Gomes | Publicado: Terça, 28 de Março de 2023, 19h58 | Última atualização em Terça, 04 de Julho de 2023, 14h20 | Acessos: 1910

Nomes de embarcações carregam afetos, vivências e arte

#ParaTodosVerem: Fotografia mostra a lateral branca de um barco com o casco pintado de preto. Nessa lateral, o nome “Dalila” está pintado nas cores vermelha e preta, com a sombra em azul e laranja. Dentro do barco, há engradados vermelhos. Uma garça aparece voando no centro na imagem.
#ParaTodosVerem: Fotografia mostra a lateral branca de um barco com o casco pintado de preto. Nessa lateral, o nome “Dalila” está pintado nas cores vermelha e preta, com a sombra em azul e laranja. Dentro do barco, há engradados vermelhos. Uma garça aparece voando no centro na imagem.

Por: Edmê Gomes Fotos: Alexandre de Moraes 

A tradição de nomear barcos faz dos rios amazônicos bilhetes que correm. No vai e vem das marés, mensagens inteiras ou substantivos únicos dão o tom das águas. Na Amazônia, os rios falam. E foi de tanto ouvi-los que Ellen Cristina da Silva Corrêa decidiu escrever. “Ao ouvir as histórias do meu pai, pescador, e do meu avô, escutava sempre os nomes das embarcações. Então, comecei a observar esses nomes de maneira mais atenta, procurando verificar o que eles representavam para quem os escolheu”, revela a professora.

O interesse resultou na dissertação Nomes a navegar: saberes, práticas e significados nos nomes das embarcações pesqueiras de Bragança-Pará. No estudo, a autora buscou compreender de que forma se estabelece a escolha dos termos usados para nomear os barcos na cidade de Bragança, nordeste paraense. “Eu percebi que todo e cada significado revela muito sobre o seu dono: suas crenças, o que viveu ou ainda vive. O barco é uma extensão desse sujeito. Na pesca artesanal, sobretudo, os nomes personalizam a embarcação, transcendem o ato de nomear um pedaço de madeira. Há estudos que comprovam que os nomes dos barcos têm relação com a história de vida dos seus proprietários, como se fossem cartas que contam a história de vida do barqueiro”, destaca Ellen Corrêa.

A pesquisa parte da ideia de que, por meio do significado dos nomes das embarcações, é possível compreender a interação entre homem, embarcação e natureza. Ellen começou pela pesquisa de campo, buscando informações nos estaleiros bragantinos e, em seguida, por meio de depoimentos orais e entrevistas, coletou as falas dos sujeitos abridores de letras e dos donos de barcos.

“Me debrucei sobre o tema por meio de fontes primárias. Em seguida, parti para pesquisa de campo. Fiz duas visitas para conversar com os sujeitos, de maneira espontânea, observando a dinâmica na vida real. Na terceira visita, fui munida de materiais para registro, tais como: caderno de anotações, celular e gravador. Então selecionei os seis entrevistados e, na visita seguinte, apliquei um roteiro semiestrurado de entrevista para coletar as informações”, detalha.

Abridores de letras materializam desejos de proprietários

A autora percebeu que, em Bragança, os nomes dados aos barcos levam em consideração os contextos socioculturais que cercam seus proprietários, além de questões religiosas, parentais e afetivas. Também foi possível identificar a relação entre os abridores de letras navais e os nomes que eles pintam. Segundo a pesquisadora, os simbolismos presentes nos nomes das embarcações expressam as vivências dos donos dos barcos e marcam os saberes e fazeres dos abridores de letras, responsáveis por materializarem esses nomes.

Dessa forma, Ellen Cristina da Silva Corrêa realizou a pesquisa em duas frentes: buscou entender a simbologia dos nomes dados aos barcos não somente para seus proprietários, como também para os abridores de letras. Ela identificou as influências que os proprietários consideram na etapa de nomeação de seus barcos e a compreensão do saber-fazer dos abridores de letras navais.

A pesquisadora categorizou os donos de embarcações entrevistados em dois grupos: “O dono de barco pescador, aquele que é dono do barco e vai ao mar com sua tripulação para pescar, e o dono de barco empresário, aquele que é dono do barco e dos materiais de pesca, mas não vai ao mar para pescar”, explica. Ellen Corrêa afirma que a divisão sublinha a grande diferença entre ser e ter e permite uma leitura atenta a respeito de uma sociedade centrada sobre as pessoas e uma sociedade centrada sobre as coisas.

“Há, claramente, uma divisão entre as práticas pesqueiras no município, e isso reflete na relação dos donos com seus barcos. Pude entender que são os acontecimentos que moldam o dono de barco que é também pescador. Mais que ser dono de barco, o que o deixa orgulhoso é o fato de ele ser o comandante, não porque essa vaga deva ser preenchida pelo proprietário, mas por ser um espaço que deve ser daquele que conhece as técnicas da pescaria, como locais de pesca, movimentações da maré e da lua, entre outras”, esclarece.

Quanto ao saber-fazer dos abridores de letras, a pesquisa ratifica a atividade como integrante do conjunto de profissões navais. O estudo destaca que os profissionais são “especialistas artistas” cujas técnicas foram, em sua maioria, desenvolvidas empiricamente. “São sujeitos que detêm conhecimentos empíricos que fomentam o saber-fazer da sua profissão. Além disso, o nome da embarcação torna-se representativo em várias perspectivas, seja pela oportunidade de fixarem seus espaços por conta da peculiaridade da arte feita em cada letra que compõe o nome do barco, seja pelos acontecimentos que envolvem cada pintura de embarcação – histórias e aventuras vivenciadas por esses artistas no momento da execução de seu trabalho”, analisa a pesquisadora.

Livros, TV e religião influenciam a escolha do nome

Ellen da Silva Corrêa destaca que dar sentido à palavra não é uma ação simples, pois implica a consideração de fatores culturais, etários, geográficos, sociais e religiosos. Ela lembra que os nomes nascem da relação semântica que se estabelece entre o objeto e sua designação.

“A atividade de nomear na região amazônica é algo peculiar. Dessa maneira, as inflluências socioculturais inseridas no ato de nomeação podem, também, ser observadas quando um paraense nomeia seu filho e sua embarcação. Na cidade paraense de Bragança, notamos que os nomes dados aos barcos podem ser os mesmos atribuídos aos filhos, filhas, esposas, netos, ou seja, há uma relação de proximidade entre objeto e proprietário. O nome tem uma atribuição sentimental”, explica.

Destaca-se, ainda, a presença de nomes dados por motivos relacionados ao contexto circundante, isto é, os proprietários podem nomear suas embarcações considerando aquilo a que têm acesso, como livros, televisão, imagens, entre outros fatores. Entretanto, depois de nomeadas, as embarcações passam a representar os sentidos desses nomes, e isso pode ser conflituoso, visto que os proprietários tendem a considerar os nomes como parte fundamental para que a embarcação seja promissora”, observa a autora.

Nesse contexto, salienta Ellen, verifica-se que os nomes dados às embarcações alcançam variadas extensões e que a religião se apresenta como predominante. “O dono de barco leva em consideração a sua religião quando acredita que, por meio do nome, a embarcação receberá proteção divina”, completa.

Sobre a dissertação: Nomes a navegar: saberes, práticas e significados nos nomes das embarcações pesqueiras de Bragança- Pará foi defendida por Ellen Cristina da Silva Corrêa, em 2021, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Antrópicos na Amazônia (PPGEAA), Campus Castanhal da Universidade Federal do Pará. A orientação foi da professora Roberta Sá Leitão Barboza.

Beira do Rio edição 166

 

 

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