Argila, histórias e memórias
Projeto valoriza tradição das louceiras de Bragança e do Marajó
Por Victoria Rodrigues. Fotos: acervo da pesquisa
Você já ouviu falar que comida feita em panela de barro é mais saborosa? Existe uma explicação para isso: a panela de barro preserva a essência dos sabores, pois seu tempo de preparo é mais lento, além disso, ela conserva o valor nutricional dos alimentos. No entanto engana-se quem imagina que esses utensílios foram totalmente substituídos pelos recipientes mais modernos, utilizados na cozinha atual. Muitos saberes acerca da produção de cerâmica ainda são transmitidos, de geração em geração, por famílias que optaram por guardar a herança cultural deixada pelos povos originários e pelas comunidades quilombolas.
Empenhados na análise desse cenário, os professores Erasmo Borges, Tiago Samuel Bassani, Elaine Andrade e Jailton Gomes, da Faculdade de Artes Visuais (FAV), vinculada ao Instituto de Ciências da Arte (ICA/UFPA), decidiram estudar, por meio de um projeto de pesquisa e extensão, os registros da tradição da cerâmica preservados ao longo do tempo. Com base nessa proposta, contemplada com o Prêmio Proex de Arte e Cultura/2022, os pesquisadores buscaram desenvolver práticas extensionistas, laboratoriais e de campo; capacitar pessoas interessadas na continuação do processo de produção da cerâmica nas comunidades; integrar as atividades do Laboratório de Cerâmica ao curso de Artes e estabelecer interseções entre diferentes linguagens e expressões artísticas da contemporaneidade.
Para isso, os pesquisadores foram ao encontro de louceiras na Vila Quiera, em Bragança, e no Quilombo de Santana do Arari, localizado na Ilha do Marajó. Nas duas comunidades, o grupo pôde observar mulheres dessas localidades que dominam o processo de confecção das panelas de barro. “Embora a prática da cerâmica seja muito difundida na nossa região e uma das referências mais antigas em termos de Brasil, ainda há muito o que estudar e descobrir”, destaca o professor Erasmo Borges, da Faculdade de Artes Visuais.
Técnica facilita manuseio de materiais durante a criação
O professor Erasmo Borges iniciou as pesquisas relacionadas à cerâmica na década de 1980, quando conheceu a técnica para a produção de um tijolo maciço, muito utilizado na construção de casas populares naquela época. Após essa experiência, Borges realizou trabalhos com xilogravura e, atualmente, com outros pesquisadores, desenvolveu a técnica denominada de argilogravura, método que possui formas de modelagem semelhantes, mas, diferentemente da xilogravura, permite a reutilização da argila, além de facilitar o manuseio dos materiais da criação.
“Em 2006, recebi convite para ministrar as disciplinas de Arte e Tecnologia na Faculdade de Artes Visuais (ICA/UFPA). Quando surgiu a oportunidade, assumi a disciplina Cerâmica. Fui adentrando nesse universo apaixonante, em que você pesquisa o material e desenvolve as técnicas. Como em todo processo artístico, é importante o criador tentar produzir o seu próprio material. Isso também ocorre com as louceiras, e o resultado é fantástico”, ressalta o professor Erasmo Borges.
Para aprofundar a pesquisa, o grupo visitou os locais de produção das louceiras. Com o tempo, foi possível partilhar aprendizados e ouvir diversas histórias, como a da dona Nazaré Furtado, da Vila Quiera, a qual guarda os saberes da tradição dos povos caetés, repassados, de geração em geração, pela família dela, e a história da dona Maria da Glória, ceramista mais antiga do Quilombo de Santana do Arari, a qual não realiza essas atividades em virtude da sua deficiência visual, mas também compartilhou as experiências dela com os pesquisadores.
Laboratório de Cerâmica recebe alunos da rede pública
Durante o processo de pesquisa e experimentação da argilogravura, alguns alunos tiveram a ideia de trazer estudantes da Escola Estadual de Ensino Fundamental José Bonifácio e da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Jarbas Passarinho para acompanhar as experiências no Laboratório de Cerâmica, na Faculdade de Artes Visuais da UFPA. A iniciativa promoveu ações que possibilitaram ao grupo trocar experiências, conhecer o campus da Universidade, compreender o papel das Artes Visuais na sociedade e ampliar as perspectivas em relação à confiança no seu potencial criativo.
Com o conhecimento inspirado na argilogravura, professores e alunos do Laboratório de Cerâmica produziram um painel artístico de 1,30m por 2,60m, que hoje se encontra no hall de entrada dos laboratórios do Atelier de Artes Visuais da UFPA. Na obra, estão presentes 36 placas cerâmicas que foram gravadas e utilizadas no antes e pós-cozimento das peças.
Sobre a pesquisa: O Projeto de pesquisa e extensão Saberes da Tradição em Cerâmica: registros e fazeres no Quilombo de Santana do Arari e Vila Quiera foi desenvolvido pelos docentes Erasmo Borges de Souza Filho, Elaine Andrade Arruda e Jailton Gomes da Silva, todos da Faculdade de Artes Visuais (FAV), vinculada ao Instituto de Ciências da Arte (ICA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), e pelo professor Tiago Samuel Bassani, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A pesquisa ainda contou com a participação de 20 discentes do curso de Artes Visuais, com atividades realizadas de setembro/2022 a junho/2024.
Beira do Rio edição 173
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