A arte do terreiro em exposição
Estudo analisa obras e artistas afro-amazônicos
Por André Furtado. Foto: Acervo Centro Cultural da Justiça Eleitoral do TRE-PA
Ele saiu de casa e se dirigiu à Galeria de Artes Theodoro Braga, no centro de Belém. A exposição em cartaz sai dos moldes tradicionais e apresenta ao público algo novo no cenário artístico-cultural da capital do Pará. Na abertura, em meio ao salão, o discurso de uma mulher emocionada, rodeada pelos organizadores do evento, chama atenção ao proferir: "Eu não sabia que era artista. Quem disse que eu era artista foram vocês!". A artista em questão é a candomblecista Mametu Nangetu. A exposição é Nós de Aruanda, Artistas de Terreiro. “Ele”, o personagem citado na primeira linha, é Carlos Arthur Góes Cordeiro. Proveniente de família cristã protestante, historiador e professor da rede básica de ensino, Carlos Cordeiro se deparou com a cena em 2013, enquanto observava a exposição.
A frase da afrorreligiosa Mametu Nangetu foi tão marcante que se tornou o pontapé para sua jornada acadêmica, iniciada com a Graduação em História e estendida até o mestrado, com a dissertação intitulada Eu não sabia que era artista!: exposição Nós de Aruanda, Artistas de Terreiro, no cenário cultural afro-amazônico paraense. “A minha pesquisa, na verdade, foi um insight de quando eu ainda cursava a graduação. Porém eu só percebi isso em 2017, ao investigar como os alunos identificavam essas expressões artísticas, de matriz africana, dentro do espaço escolar, com base em uma perspectiva mais descolonizada e antropológica”, explica Carlos Góes Cordeiro.
Idealizada pelo então professor da UFPA Arthur Leandro (in memoriam), a Exposição Nós de Aruanda, Artistas de Terreiro surgiu como um projeto de extensão do Grupo de Estudos Afro-Amazônico (Geam). O objetivo era trazer a arte afro-brasileira para fora dos espaços de terreiros, enfatizando que filhos e filhas de santo eram artistas. A exposição, que contou com oito edições, tinha como tripé: a aplicabilidade da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatória a abordagem da cultura e da história africanas em sala de aula; a exaltação da memória e luta de Mãe Doca (Rosa Viveiros), mulher negra, maranhense, que inaugurou o primeiro terreiro de tambor de mina em Belém, em 1891; e a apresentação para a população das experiências artísticas vivenciadas dentro dos terreiros.
Salões, galerias e outros espaços de sociabilidade
Com a pesquisa, Carlos Góes Cordeiro quis mostrar a importância de o patrimônio afrorreligioso estar presente nos espaços de sociabilidade. “Vejo que é um desafio, principalmente dentro dos programas de pós-graduação mais tradicionais, as pessoas perceberem as dimensões dessas formas de cultura. Quando se fala em patrimônio, percebemos um constructo social engessado: um casarão, um monumento ou um objeto, mas não notamos, em muitos casos, a presença material e a imaterial do patrimônio contido em terreiros sagrados”, ressalta o historiador.
A pesquisa procurou dar voz aos artistas de terreiro e perceber o que eles entendem como arte, considerando seus fazeres e suas vivências dentro das casas de santo. Inicialmente, foi feito um aporte teórico autores que tecem discussões antropológicas patrimoniais. Em seguida, Cordeiro buscou artistas e suas obras, usando, como critério, a disponibilidade, pois o período era de pandemia de covid-19.
O estudo evidencia a necessidade de ampliar o debate sobre o patrimônio dos povos de terreiro. Essa discussão está intimamente ligada à política histórica e cultural do Pará, uma vez que, na capital do estado, apenas o Terreiro de Mina Dois Irmãos, localizado no bairro Guamá, é tombado pelo Departamento de Patrimônio Histórico Artístico e Cultural (DPHAC). “Em Belém, temos mais de três mil terreiros e apenas um é registrado de forma imaterial. Existe um legado das tradições de matriz africana que é pouco considerado pelo Poder Público e em debates socioculturais”, avalia o pesquisador.
“Discutir a religiosidade da nossa região é importante, porque nos delimita como indivíduos múltiplos e únicos entre tantas outras localidades do Brasil, mas sem perder de vista os laços que unem a identidade dos povos de terreiros para fortalecimento da cultura e a energia vital (Axé) presente nos cultos afros”, explica Carlos Cordeiro.
Cultos afros ainda enfrentam a intolerância religiosa
Outro ponto destacado na dissertação é a intolerância religiosa, responsável por propagar um imaginário ruim acerca dos cultos afros. “Em um dos eventos da exposição, no ano de 2017, houve a circulação de uma performance do orixá das matas (Oxóssi), da Av. Presidente Vargas até a Galeria Theodoro Braga. Foi interessante ver a reação dos transeuntes diante de pessoas trajadas com guias, indumentárias de santo, além da entidade vestida de folhagem amazônica. Foram recorrentes os atos de se benzer ou se afastar e olhares de desprezo. Outro exemplo aconteceu em 2016, quando um grupo levou uma obrigação para o rio, no distrito de Icoaraci, e foi hostilizado por estar fazendo 'macumba'”.
A pesquisa demonstra como a exposição foi importante para fazer com que filhos e filhas de santo passassem a se reconhecer como artistas. “A minha intenção era não apenas responder problemas estruturais como a exclusão artística dos terreiros, mas também refletir sobre a arte produzida em Belém. Quando Mametu Nangetu se reconhece como artista, indivíduo ativo na sociedade, produtora de cultura e saberes, mesmo que ela não entenda, está descolonizada da ideia de arte”, analisa, satisfeito, Carlos Arthur.
Falar sobre patrimônio no Brasil ainda envolve disputas de poder. “Nenhum de nós nasce com preconceito, eles nos são ensinados. Ao longo do tempo, vamos somando experiências na escola, no trabalho e com os amigos, e então quebramos alguns paradigmas. Foi esse movimento que, em 2013, me fez mudar de concepção acerca dos cultos afros. Desconstruir começa na base do ensino”, finaliza o historiador.
Sobre a pesquisa: A dissertação Eu não sabia que era artista!: exposição Nós de Aruanda, Artistas de Terreiro, no cenário cultural afro-amazônico paraense foi defendida por Carlos Arthur Góes Cordeiro, em 2021, no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Patrimônio Cultural (PPGPATRI/Itec), da Universidade Federal do Pará, com orientação da professora Anna Maria Alves Linhares. Esta pesquisa contou com financiamento da Fapespa.
Beira do Rio edição 173
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