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Entrevista: Uma história de glória, dor e superação

Publicado: Segunda, 18 de Setembro de 2023, 18h55 | Última atualização em Terça, 19 de Setembro de 2023, 19h25 | Acessos: 681

Helena e Ulysses Nobre voltam aos palcos em tese de Gilda Maia

#ParaTodosVerem: Fotografia mostra mulher branca em um casarão antigo, com piso, janelas, portas e paredes desgastados. A mulher encontra-se de pé, apoiada em um corrimão de madeira. Ela usa vestido de modelo tomara que caia preto, tem cabelos lisos na altura dos ombros e carrega um relógio preto no pulso esquerdo.
#ParaTodosVerem: Fotografia mostra mulher branca em um casarão antigo, com piso, janelas, portas e paredes desgastados. A mulher encontra-se de pé, apoiada em um corrimão de madeira. Ela usa vestido de modelo tomara que caia preto, tem cabelos lisos na altura dos ombros e carrega um relógio preto no pulso esquerdo.

Por Walter Pinto Foto: Alexandre de Moraes

Uma história de glória e dor, mas, sobretudo, de reconhecimento da cidade ao talento de Helena e Ulysses Nobre, os “Uirapurus paraenses”, cantores líricos que atuaram, principalmente, na primeira metade do século XX. Esse pode ser um resumo da pesquisa empreendida pela musicóloga e pesquisadora Gilda Helena Gomes Maia sobre a vida artística dos Irmãos Nobre, mas o estudo proporciona várias outras contribuições à historiografia musical paraense. A tese Uirapurus Paraenses: o legado histórico e a prática artístico-musical dos cantores líricos paraenses Helena Nobre (1888-1965) e Ulysses Nobre (1887-1953), desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes/ICA) da UFPA, remonta ao sucesso dos irmãos, mas também reconstitui o isolamento ao qual foram submetidos por causa da hanseníase. Entretanto o que seria um momento de dor, transformou-se em glória ao proporcionar uma inédita experiência sonora e inspiração para um programa de grande audiência na radiofonia paraense.

20 anos de pesquisa

Considero-me uma arqueóloga do som e da memória, que, ao pesquisar, estudar e escrever sobre a produção musical e cultural de décadas passadas, ajudo a preservar memórias que iluminam a minha própria história. Esta pesquisa iniciou em 2003, tendo resultado a biografia Ode a uma nobre pianista, publicada em 2011, uma homenagem, em vida, que eu e a professora Liliam Cohen fizemos para a pianista Helena Maia, minha mãe. No primeiro capítulo do livro, falo sobre a Família Nobre. Senti-me estimulada a aprofundar o tema na especialização, em 2006, por meio de um estudo mais geral, sobre a vida e obra dos irmãos Helena e Ulysses Nobre, cantores líricos, sendo orientada pela professora Lia Braga Vieira. Em 2011, no mestrado, realizei um estudo de gênero sobre a carreira musical de Helena Nobre. Agora, vinte anos depois, no doutorado, pesquisei o legado artístico-musical dos Irmãos Nobre. Nas duas ocasiões, fui orientada pela professora Liliam Cohen.

Objetivo e documentação

Minha tese tem por objetivo refletir sobre o legado histórico daqueles artistas, pesquisando e identificando sua prática artístico-musical como cantores líricos e compositores paraenses da primeira metade do século XX. Nos dias atuais, encontram-se registros da história de Helena e Ulysses tanto na memória dos que tiveram a oportunidade de conhecê-los e de assistir aos seus recitais quanto nos documentos sob guarda de acervos públicos e privados. Os registros mostram que os Irmãos Nobre tiveram uma vida artística profícua em vários campos e também o processo de invisibilização e esquecimento da herança musical desses artistas ao longo dos anos.

Visibilidade e acessibilidade

Minha tese pretende contribuir com a historiografia musical paraense ao disponibilizar informações para futuras investigações acadêmicas sobre música regional. Pretendo remover o silêncio que tem pairado sobre a história de vida, a formação e a atuação musical de Helena e Ulysses Nobre, observando a compreensão da sociedade, inclusive a musical, da época sobre os irmãos. Abrir esse acervo e apresentar o legado deles é iluminar as informações contidas e adormecidas, dando acessibilidade ao que está guardado em museus e bibliotecas

Nascidos entre músicos

Yoyô e Flor, como eram chamados pela família, eram filhos do flautista Gentil Augusto e da pianista Maria Francisca. Seguiram a carreira de cantores líricos, compositores e professores particulares de Canto, atuando de forma natural e espontânea desde muito novos, vendo seus pais e irmãos atuarem também, durante toda a primeira metade do século XX até meados da década de 1960. Trabalharam artisticamente sob a influência da música erudita europeia, produzindo e interpretando a arte do “Bel Canto”. Ulysses Nobre foi também cronista cultural em vários jornais de Belém.

As estreias de ambos no canto lírico ocorreram em momentos diferentes: Helena, soprano lírico leggero, em 1904, aos 15 anos, no Sport Club do Pará, interpretando árias de Carlos Gomes. Ulysses, barítono com facilidade para agudos, em 1906, aos 19 anos, no foyer do Theatro da Paz, interpretando, entre outras composições, “Tônio”, da Ópera Il Pagliacci, de Leoncavallo, que seria seu número de maior sucesso durante muito tempo.

Por suas qualidades vocais, Helena ficou conhecida como “Rouxinol Paraense”; e Ulysses, como “Titta Ruffo Paraense”. Por muitos anos, eles se apresentaram com seus parentes músicos e vários artistas, mas ficaram especialmente conhecidos como a dupla “Irmãos Nobre”.

Compositores paraenses

Os irmãos sempre prestigiaram compositores paraenses, não raramente deles recebendo primeiras audições. Obras de Waldemar Henrique, Gama Malcher, Meneleu Campos, Ettore Bosio, Alípio César, Henrique Gurjão, Manuel Paiva, José Brandão, Paulino Chaves e Gentil Puget eram presença constante em seus recitais anuais. Os irmãos também se apresentaram em festivais e saraus em São Luís, Manaus, Recife e Rio de Janeiro. Com isso, teceram uma grande rede de relações, que nunca parou de crescer, chegando, inclusive, ao âmbito internacional.

O estigma da hanseníase

Falar de Helena e de Ulysses é também falar de preconceito, silenciamento e invisibilização. Os irmãos sofreram, juntos, os estigmas da hanseníase ainda na adolescência. Quando Helena tinha 18 anos e Ulysses 19, começaram a apresentar os primeiros sinais da doença. No início dos sintomas, buscaram, no Rio de Janeiro, um tratamento específico para a cura da enfermidade. A viagem acabou se transformando numa excursão artística, durante a qual tiveram a oportunidade de cantar em espaços conceituados do Rio de Janeiro. O duo alcançou duas conquistas: a paralisação da doença e o título “Irmãos Nobre” - que incorporaram como marca pessoal.

Em 1908, retornaram do Rio de Janeiro, curados, mas as sequelas da doença ficaram em seus corpos e no convívio social. Em Belém, aperfeiçoaram-se e amadureceram seus conhecimentos sobre o canto e as artes. Deram continuidade em suas carreiras e continuaram atuando como cantores, intérpretes, compositores e professores de Canto.

No entanto, em 1925, mediante um decreto municipal no governo de Dionísio Bentes, por iniciativa do secretário de Saúde, Aben-Athar, Helena, aos 37 anos, e Ulysses, aos 38 anos, sofreram isolamento domiciliar por seis anos, sendo proibidos de cantar em público e sair de sua residência. A casa na Travessa Campos Sales, em Belém, foi batizada de “Gaiola Dourada”, por guardar os “Uirapurus Paraenses”. As crônicas e entrevistas da época revelam que amigos e familiares continuaram visitando os irmãos Helena e Ulysses. A casa sempre foi local em que artistas e intelectuais iam para nutrir conversa sobre o panorama artístico do momento e ouvi-los cantar.

Sucesso radiofônico

Os “Irmãos Nobre” viviam da sua atividade musical. O decreto de 1925 não os impediu apenas de sair de casa, impediu a subsistência deles. Sua rede de relações, no entanto, foi responsável em angariar recursos financeiros, realizando recitais e arrecadando doações. O círculo político construído em torno deles foi tão forte que os tirou da clausura através das ondas do rádio. A carreira de Helena e Ulysses continuou com uma nova roupagem, por meio dos Festivais Lítero- -Musicais Radiofônicos dos “Irmãos Nobre”. Foi a Rádio Clube do Pará (PRC-5) que tirou as vozes dos “Uirapurus Paraenses” da clausura.

A noite de 25 de agosto de 1931 pode ser considerada um marco na história da música paraense. Na ocasião, microfones da rádio foram instalados na “Gaiola Dourada” e transmitiram as vozes dos “Uirapurus Paraenses” para os alto-falantes dispostos no palco do Theatro da Paz. A sociedade paraense foi ao teatro não mais para vê-los, mas para ouvi-los, momento muito esperado na cidade, brindado com muita emoção e lágrimas.

Depois deste, muitos outros festivais radiofônicos se seguiram. Crônicas da época relatam que a cidade parava na noite dos Festivais dos Irmãos Nobre, momento esperado pelos amantes do canto lírico. A “Gaiola Dourada”, da Travessa Campos Sales, passou, então, a ter um forte valor simbólico para a história da música paraense.

Beira do Rio edição 168

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