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A vida à beira das águas em Belém e Porto Alegre

Publicado: Quinta, 01 de Julho de 2021, 20h11 | Última atualização em Quinta, 01 de Julho de 2021, 20h11 | Acessos: 1655

As populações das capitais do Pará e do Rio Grande do Sul interagem de modos diferentes com rio e lago que delineiam seus espaços urbanos

Vista das cidades de Belém e Porto Alegre a partir das ilhas
imagem sem descrição.

Por Matheus Luz e Leonardo dos Santos Machado Fotos Alexandre de Moraes / Flávio Dutra

Primeira reportagem produzida, em parceria, pelo Jornal Beira do Rio, da Universidade Federal do Pará, e pelo Jornal da Universidade, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, volta o olhar para a relação que os habitantes de Belém e Porto Alegre mantêm com as águas que compõem sua orla. Buscamos na identidade geográfica um caminho para iniciar o esforço de construir uma rede dos veículos de comunicação pública das Instituições Federais de Ensino Superior.

 Começamos por Belém, cuja história sempre remeteu ao rio. O berço do processo de urbanização de Belém esteve cercado pela relação e pelo convívio com as águas. No primeiro bairro da capital paraense, conhecido hoje como Cidade Velha, a vida urbana se desenvolveu às margens do rio Guamá e da Baía do Guajará, onde moradores, pescadores, barqueiros, carregadores e várias outras pessoas construíram suas vidas próximas da água.

Para compreender as formas de organização, adaptação e sociabilidade na antiga zona portuária da Cidade Velha em Belém, a antropóloga Sabrina Campos Costa se dedicou a pesquisar as formas como a vida ocorre na área e as interações com a paisagem do lugar. A pesquisadora imergiu na vida do local, conversando com as pessoas que vivem e movimentam a área e entrevistando-as, além de observar fontes documentais e audiovisuais.

Essas observações foram compartilhadas na dissertação intitulada Porto, Água e Vida: paisagem, sensorialidades e transformações de uma zona portuária amazônica (Cidade Velha, Belém, Pará), orientada pela professora Renata de Godoy e defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da UFPA.

A antiga zona portuária estudada pela autora contempla as comunidades Beco do Carmo, Beiradão, Menino Jesus, Porto do Sal e Palmeira, situadas no entorno do Mercado do Porto do Sal e da Igreja do Carmo, no bairro Cidade Velha. “Na Cidade Velha da beira, ainda vemos percepções de mundo, usos, sensorialidades, afetos e tensões produzidas pela dinâmica com o rio, que conduzem a modos de ordenamento, construção e (res)significação de espaços ‘da casa’, ‘da rua’ e ‘da água’. O medo da expulsão e da estigmatização também faz parte da vida dos moradores”, comenta a pesquisadora.

Sabrina Costa criou o conceito de “beirabilidade” para descrever e explicar os processos de ocupação da “beira”, ou seja, as estratégias de habitação, a alimentação, os códigos sociais e morais e as sensibilidades e relações desenvolvidas pelas pessoas que vivem às margens do rio, compartilhando os saberes e as identidades do lugar onde habitam.

“Há relações próprias de família, vizinhança e amizades, que fluem entre o mercado do Porto do Sal, a frente das casas, a praça do Carmo, o Palmeiraço, os portos, os balneários e as ilhas. Nesses locais, ocorrem conversas, pesca, banho, contemplação, brincadeira, festa. Além disso, projetos artísticos e socioculturais nas comunidades têm contribuído para seu lazer e estima”, explica a antropóloga.

Na beira do Sul

Na região central de Porto Alegre (RS), toda essa sociabilidade da beira d’água já se esvaziou. Em 1974, a cidade se separou das águas do Guaíba com a construção do muro da Mauá, uma estrutura de concreto de 6 metros de altura, sendo três acima do solo e três abaixo, e 2.647 metros de comprimento. A barreira, construída pelo extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), tem a finalidade de evitar desastres semelhantes à enchente de 1941, a maior da história da cidade.

Desde que foi erguido, suas comportas já tiveram que ser fechadas em vários momentos, sendo o mais recente em 2015, quando o nível do Guaíba registrou sua segunda maior cheia da história. Nessa ocasião, tiveram que ser usadas retroescavadeiras para que os portões do cais fossem fechados. Ainda assim, são recorrentes as discussões que propõem sua redução e remoção completa de forma a integrar o cais à cidade.

Joel Goldenfum, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, alerta, no entanto, que a área é inundável e vai ser alagada quando houver cheias. Ele pontua que, historicamente, o cais de porto não é local de integração. Como não tem mais função de cais de porto, poderia ser uma área de eventos culturais. “Só cuidado: quando acontecerem cheias, essa área não está protegida, com ou sem o muro”, ressalva.

Seus armazéns, de fato, já foram utilizados como palco da Bienal do Mercosul e da Feira do Livro e constituem Patrimônio Histórico Nacional e Municipal, mas, nos últimos anos, sofrem com sérias questões de riscos estruturais e inutilização.

Especialista em Direito urbano e ambiental e doutorando em Planejamento Urbano e Regional na UFRGS, Demétrius Gonzalez pontua que simplesmente derrubar o muro não vai resolver todos os problemas de integração. Uma primeira questão que surgiria é a macrodrenagem urbana e a proteção contra cheias. A segunda se dá em termos urbanísticos. “Somente tirar o muro não vai permitir essa integração entre o centro de Porto Alegre e o cais do porto, porque nós vamos continuar tendo uma via rápida como a Avenida Mauá, que tem 5 pistas, ônibus, caminhão e tudo mais acontecendo; não é uma travessia segura”, acrescenta. Nesse sentido, o Trensurb é outro obstáculo.

Apesar das dificuldades, ele acredita que retirar o muro poderia promover a integração da população com o cais. Mas, para isso, a Mauá precisaria ser qualificada urbanisticamente para atrair as pessoas. “Há necessidade de, ao pensar a demolição do muro da Mauá, se isso for uma alternativa, pensar um projeto urbano integral de toda essa região entre a rodoviária e a Usina do Gasômetro”, destaca.

Deslocando-se da região central de Porto Alegre em direção à zona sul, passamos a observar maior interação dos habitantes com o Guaíba. Além da Praia de Ipanema, existem diversos clubes, marinas de barco, entre outras atividades naquela região. E mais para o extremo sul da cidade, explica Clarissa Maroneze, doutoranda em Planejamento Urbano e Regional na UFRGS, ainda há uma apropriação por parte da comunidade, como no Lami, que tem praia balneável.

“A poluição do Guaíba ainda é um problema a ser resolvido, que limita possíveis atividades no rio, além das questões ambientais. O Parque Marinha, criado na década de 1970, nasceu do desejo dos porto-alegrenses de integração com o rio, sendo um exemplo do quanto a população tem relações de afeto com o Guaíba, pois ainda hoje é muito utilizado”, enfatiza.

Da Praia do Lami até a Usina do Gasômetro, a orla do Guaíba é o berço de Porto Alegre. A cidade tem sua ocupação colonial, seu crescimento e desenvolvimento urbano em razão do rio. Desde o princípio, o Guaíba possibilitou não só as atividades econômicas (por meio do porto) e o transporte de passageiros (em uma época de poucas estradas), mas também proporcionou atividades de lazer.

“A orla do Guaíba esteve, por muitos anos, em descaso do poder público ou recebeu projetos que não foram considerados viáveis e nunca saíram do papel. Mesmo assim, nunca deixou de ser um local de atração para seus habitantes, que a utilizavam mesmo sem qualquer infraestrutura e que a defendem como um local de uso público e de acesso para todos”, pontua Clarissa.

A recente revitalização da orla desde a Usina do Gasômetro até a direção do Museu Iberê Camargo permitiu, segundo Demétrius, que a população encare urbanisticamente que Porto Alegre é uma cidade que tem orla.

Ainda em processo de consolidação, a revitalização, até o momento, recebeu um tratamento mais paisagístico do que propriamente urbano. Para Demétrius, existe uma séria questão de adequar a mobilidade urbana (estacionamentos, transportes coletivos, bicicletas etc.) naquela região, além de segurança. Mas, no geral, opina, foi boa para a população e a cidade. Um dos pontos que o doutorando acredita que poderia ser melhorado é a gentrificação: "A orla do Guaíba precisa ser pública. Ser pública significa que eu preciso atender classe alta, média, baixa”. Portanto as estruturas e os equipamentos não podem favorecer a ocupação apenas por um estrato social. Outro ponto é aumentar as atividades culturais nesse espaço que ainda está muito ligado ao lazer e à contemplação.

De volta aos beiradeiros do Norte

O investimento público na manutenção dos espaços junto ao rio não costuma chegar para toda a cidade. É comum deixar de fora dessas iniciativas regiões ocupadas por populações que mantêm laços com modos de vida tradicionais, que têm no porto um lugar de vida. Outra área portuária da cidade também foi fonte de estudo. O pesquisador Antonio Rodrigo das Mercês Paiva foi ao encontro de uma dessas áreas portuárias de Belém, em sua dissertação Lugares de vida: olhares sobre o Porto da Palha Belém-PA, defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEO) da UFPA, sob orientação do professor Sergio Cardoso Moraes.

O geógrafo analisou o modo de vida ribeirinho no Porto da Palha, no bairro Condor. O estudo parte das experiências dos sujeitos que vivenciam o local, percebendo as relações simbólicas entre as pessoas e suas práticas sociais. O pesquisador discute a visão que comumente se tem de um porto ser um local de passagem, para o embarque e desembarque de pessoas e mercadorias, mas argumenta que o Porto da Palha, assim como outros de Belém, é um “lugar de vida” formado por pessoas que têm o local como parte do cotidiano e de sua sobrevivência.

Antonio descreve as pessoas que constituem a vida no porto: “ribeirinhos dão o colorido com suas embarcações e mercadorias, os carregadores carregam as suas histórias e as mercadorias, os barqueiros, que vão e vêm pelas turvas águas do Guamá, trazem mercadorias e pessoas, (fazem até recarga de celular). Os atravessadores de açaí, no período da safra, enchem o trapiche com o açaí do ‘outro lado’, um colorido que tem hora para começar e terminar. Os barqueiros (existem dois tipos, os que fazem a “Linha” para as ilhas e os que vêm de outros municípios de maneira mais sazonal) vindos de diversos lugares trazem, a qualquer hora do dia, farinha, madeiras e carvão. Também temos os comerciantes e os moradores do Porto da Palha, que dão uma dinâmica única ao lugar, que não é apenas um atracadouro de barcos, mas também um ‘porto seguro’ para diversos sujeitos”, explica o pesquisador.

Apesar do modo de vida e da interação entre as pessoas que vivem nessas comunidades às margens do rio, as áreas ainda são vistas como periferia de Belém, em contraste com outras áreas mais afastadas do rio. A pesquisadora Sabrina Costa explica que essas zonas periféricas recebem menos investimentos públicos e são consideradas precárias e perigosas, a exemplo do Porto do Sal, na Cidade Velha, um dos mais antigos de Belém, que quase foi o principal porto da cidade, porém continua sendo invisibilizado e associado aos estigmas que cercam a área.

“A composição de Belém por mais de 80 canais e 14 bacias hidrográficas é uma vocação para a água, porém comunidades da beira são vistas como ‘empecilho’, ‘perigosas’, ‘desordenadas’ e ‘precárias’, que precisam ser modificadas para o avanço de ‘janelas para o rio’. Na Cidade Velha da beira, cerca de mil famílias sintetizam nosso anseio por qualidade de vida, gestão democrática e participativa da cidade”, ressalta a pesquisadora.

A antropóloga ressalta ainda a perspectiva dos próprios moradores sobre a falta de investimentos na área dos portos, a exemplo do depoimento de Seu Alberto: "A prefeitura tem tudo na mão. E eles que vão decidir o que vão fazer. Porque a Cidade Velha, como eu falei pra você, é um bairro bonito. A ponte tá há 40 anos estourada. Era pra tá levantada...se tivesse, você ia ver gente chegando na ponte, ia muito turista (Seu Adalberto em entrevista para Sabrina Costa, 2018).

Dessa forma, é possível perceber como a vida construída neste espaço às margens do rio passa por um processo de intervenções urbanísticas que não contemplam o modo de vida dos moradores do local, visando à apropriação das margens somente com propósitos de lazer e desenvolvimento turístico, as chamadas “janelas para o rio”, orlas e espaços públicos para a contemplação da paisagem das águas.     

 Beira do Rio edição 159

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