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A vida talhada com o machadinho

Publicado: Quinta, 30 de Janeiro de 2020, 19h12 | Última atualização em Quinta, 30 de Janeiro de 2020, 20h31 | Acessos: 5082

Relatos de dor e resistência

imagem sem descrição.

Por Aila Beatriz Inete Fotos Acervo da Pesquisa

O chamado “Ciclo da Borracha” teve o seu centro na Região Amazônica. Proporcionou transformações culturais, sociais, arquitetônicas e deu grande impulso para o crescimento de Belém, Manaus e Porto Velho. Entretanto esse desenvolvimento econômico foi usufruído apenas pela elite local e portuguesa. Os seringueiros, em sua maioria, recebiam baixos salários e viviam em péssimas condições.

Os homens iam, todos os dias, para os seringais, para um dia de trabalho exaustivo e quase sem descanso, enquanto as mulheres ficavam em casa para cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos. Assim conta a história. Mas, recentemente, algumas pesquisas mostraram que as mulheres também iam para os seringais: eram mulheres cortadoras de seringueiras. Uma dessas pesquisas é da educadora Meurygreece Caldas Farias: Prática, saberes e resistência de mulheres no contexto histórico e cultural no período da extração da borracha na ilha de Itanduba, município de Cametá/PA. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDCU/CAMETÁ), sob a orientação da professora Benedita Celeste de Moraes Pinto.

“Quando menina, eu morava na localidade de Itanduba e acompanhava minha avó materna, que ia para o mato cortar a seringueira. A vida da mulher que ia para o mato, com o machadinho e o pairé (paneiro feito de um cipó chamado jacitara), buscar o seu sustento sempre esteve presente na minha memória”, relembra Meurygreece Farias. Segundo a pesquisadora, todas as vezes em que ela estudava o Ciclo da Borracha na região, sentia-se incomodada ao ouvir falar apenas do trabalho dos homens. Essa inquietação a acompanhou por muito tempo, até poder falar sobre isso.

Seu objetivo era investigar qual foi a participação das mulheres ribeirinhas na extração da borracha no interior da Amazônia Tocantina, especialmente na localidade de Itanduba, município de Cametá (PA), “além de compreender o cotidiano dessas mulheres e o importante papel desempenhado por elas, tudo com base nas lembranças arquivadas pelo tempo e transformadas em um silêncio adormecido em mentes esquecidas”, afirma Meurygreece. A pesquisa contou com oito mulheres, com idade entre 60 e 89 anos, e a coleta de dados se deu nos anos de 2017 e 2018. Foram realizadas entrevistas, e cada mulher se identificou como mulher seringueira.

A Ilha de Itanduba foi um lugar para construir sonhos

Segundo a pesquisadora, na Ilha de Itanduba, mulheres e homens têm histórias de vidas bastante similares, apesar da origem diversificada. Os relatos evidenciam que a comunidade é constituída por negros, indígenas e descendentes de portugueses. “Na região, os indígenas tiveram grande influência nas lutas de resistência e por sobrevivência, assim como a população negra. E de onde esse povo ‘se achegava’? A Ilha de Itanduba tem inúmeras histórias, todas com o propósito comum de adquirir um pedaço de terra para construir seus sonhos de vida”, conta Meurygreece Farias.

A pesquisa descreve as mulheres como trabalhadoras, detentoras de responsabilidades e também como mulheres de negócios. “Além de acumularem o trabalho do mato, elas tinham o dever e a responsabilidade de serem boas mães, cuidando e zelando pelos filhos, muitas vezes sem a presença de maridos ou companheiros. Eram responsáveis sozinhas pela família”, revela a pedagoga.

Além disso, essas mulheres se definem como “solteiras”, “amantes da própria sorte”, “casadas” e “viúvas de marido vivo”. “Nas falas daquelas que se definem como ‘solteiras’, observa-se certa inquietação com essa situação do passado. Várias delas ‘arrumaram um homem’ para companheiro, em algum momento da vida, em virtude das cobranças da sociedade. A cobrança forçou muitas mulheres a ‘se juntarem’ com alguém apenas para constar, diante dos olhos alheios, que tinham um marido”, explica Meurygreece Farias.

A pedagoga destaca que as mulheres possuíam uma riqueza nativa, típica da época. Também eram detentoras de técnicas de manipulação e cultivo de plantas, ervas, árvores e frutos. “Era preciso ‘viver, conviver e sobreviver com as artimanhas do mato’, afirma uma das entrevistadas da pesquisa, definindo como era a vida vivida entre as árvores nesta região“, conta a pesquisadora.

Artesanato e consumo movimentavam a economia

Nas entrevistas, as mulheres compartilharam suas memórias e relembraram uma vida inteira de desafios. “Mesmo após o ciclo de riqueza do látex na nossa região, elas – mulheres ribeirinhas e resistentes – continuaram embrenhadas entre o mato, os rios e os igarapés para sobreviver às adversidades e manter suas famílias. Hoje, no processo de rememorar seu vivido, algumas sofrem por lembrar as situações de tristeza, constrangimento, angústia e dor”, ressalta Meurygreece Farias.

A pedagoga relembra um momento tenso durante as entrevistas. “Deparei-me com olhares e falas de mulheres que foram vítimas de violência sexual por alguém que se valia da situação de estar sozinho com uma mulher para assediá-la. Eram dias de muita luta. Elas articulavam seus saberes com o que a natureza podia lhes proporcionar para enfrentar as dificuldades”, relata.

Exploração – De acordo com a pesquisa, as mulheres tiveram papel fundamental nesse período, pois também contribuíram para a economia da região com a venda de seus produtos (artesanatos) e também com o consumo de outros. “É certo que a relação comercial exercida pelas mulheres seringueiras, de acordo com suas falas, caracteriza a exploração por ser mulher, por ter pouco estudo, por ser dependente de tal produto”, completa a pesquisadora. Meurygreece Farias diz que as mulheres não tiveram a oportunidade de estudar, mas possuem uma sabedoria que tem origem na sua relação com a natureza e foi primordial para desempenhar o seu papel como mulher seringueira.

Para a pedagoga, sua pesquisa possui grande importância social ao mostrar que, durante um período em que se evidenciava somente o trabalho dos homens como protagonistas da história, mulheres também estiveram presentes “no meio do mato, cortando seringas, sobrevivendo às adversidades, aos preconceitos e à discriminação”.

“Quero que todos saibam que as mulheres que cortavam seringa também ajudaram a construir a nossa história econômica, social e cultural. O que a história não pode negar é que cada mulher enfrentou o sistema e venceu seus desafios”, finaliza a pesquisadora Meurygreece Farias.

Ed.153 - Fevereiro e Março de 2020

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