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Um olhar de perto e de dentro

Publicado: Quinta, 30 de Janeiro de 2020, 19h18 | Última atualização em Sexta, 31 de Janeiro de 2020, 17h29 | Acessos: 11670

A prática da advocacia feita por indígenas, em defesa do seu povo

Desde 2009, a UFPA conta com um processo seletivo especial para os povos indígenas, com reserva de vagas em todos os seus cursos.
imagem sem descrição.

Por Flávia Rocha Foto Alexandre de Moraes

A sociedade brasileira, de forma geral, vive segundo princípios de uma visão eurocêntrica. Isso é tão presente na mentalidade dos indivíduos que, inevitavelmente, se reflete na criação das leis que regem a vida em sociedade. Assim, o fato de essas leis não contemplarem a totalidade da população do país não é uma surpresa. Embora já tenha havido avanços no campo dos Direitos Humanos, o racismo institucional e a repressão cultural ainda são alguns dos desafios enfrentados pelos povos indígenas.

A ocupação de espaços por indígenas nas carreiras jurídicas é algo recente. O primeiro indígena advogado do Brasil, Paulo Celso de Oliveira - também conhecido como Paulo Pankararu -, fez sua inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1995. É possível notar que, desde então, surgiram novas gerações de indígenas advogados que procuram defender os direitos de seus povos por meio de uma nova prática de advocacia. Desse pressuposto, o pesquisador Breno Neno Silva Cavalcante desenvolveu o estudo intitulado As sementes do chão da aldeia: os indígenas advogados nas fronteiras do mundo colonial.

Para a pesquisa, Breno entrevistou três proeminentes indígenas advogados. Eles são: Luiz Henrique Eloy Amado, da etnia Terena; Ricardo Weibe Nascimento Costa, do povo Tapeba; e Paulo Pankararu. “A partir da pesquisa, entendi que a atividade dos três configura uma advocacia indígena de fronteira. Essa é uma das práticas que se insurgem contra o direito hegemônico e se alinham com os movimentos sociais”, explica. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/ICJ), com orientação da professora Jane Felipe Beltrão e coorientação da professora Cristina Terezo.

A coexistência entre direitos e pluralismo jurídico

“Povos indígenas e suas comunidades, por terem culturas diferenciadas, podem ter regras de direito diferenciadas. Por mais que não sejam regras oficiais, referendadas pelo Estado Nacional, não deixam de instituir juridicidade. Baseados nessa coexistência entre direitos, nós podemos pensar em pluralismo jurídico. Consideramos que os advogados que atuam dessa forma estão na fronteira entre o Direito que emana das visões de mundo indígenas e o Direito que é produzido pelo Estado”, expõe o jurista.

Dentro da advocacia indígena de fronteira, a identidade étnica é acionada em determinados momentos durante a discussão do Direito, e a atuação desses advogados está em função da agenda política do movimento indígena. Muitas vezes, a própria decisão de cursar Direito vem da vontade de oferecer assistência às suas comunidades no plano jurídico. “As palavras têm significados construídos socialmente e a ordenação delas em uma frase tem implicações importantes. O uso da expressão ‘indígenas advogados’ na dissertação é uma escolha metodológica e política, para colocar a categoria ‘indígena’ na frente da categoria profissional”, afirma.

Um exemplo desse tipo de advocacia aconteceu com o advogado Ricardo Weibe, durante uma audiência pública, ocorrida em 2017. Duas imobiliárias queriam fazer um empreendimento e, para isso, usar parte do território do povo Tapeba. Foi feita uma proposta de comprar terras em outro local e deslocar as famílias da etnia para lá. A resposta foi não, pois o povo Tapeba tem uma ligação vital e afetiva com aquele território específico.

No dia da audiência, Ricardo Weibe não foi vestido de terno e gravata, mas de pés descalços, com as vestes tradicionais do povo Tapeba. Lá se apresentou como puxador de toré, que é uma dança tradicional de alguns povos indígenas. “Eu acredito que a nossa espiritualidade é o que nos mantém muito de pé, sabe? Quisemos mostrar isso pro juiz e explicar o que é espiritualidade dentro de um contexto de debate jurídico”, afirmou Weibe, em entrevista concedida ao autor da dissertação.

Grade curricular dos cursos de Direito é alvo de críticas

Essa visão de mundo vai de encontro às convenções sociais já estabelecidas. A função social da propriedade, presente na Constituição Federal Brasileira, é usada como exemplo na dissertação. Segundo Ricardo Weibe, na visão ocidental, a propriedade tem que servir à sociedade de algum modo. Porém, para a sociedade majoritária, essa função está correlacionada a edificações e aos empreendimentos. Uma área de floresta não estaria cumprindo a sua função social nessa visão.

Para esses advogados, os desafios para assegurar os direitos dos povos indígenas se mostraram desde a faculdade. No caso de Paulo Pankararu, as discussões sobre ações afirmativas nas universidades ainda não apresentavam maiores resultados quando ele entrou na graduação. Uma das principais críticas dos entrevistados foi em relação à grade curricular dos cursos de Direito. De acordo com Ricardo Weibe, algumas faculdades possuem uma disciplina voltada para o tema, a qual, geralmente, é optativa. Breno Cavalcante afirma que a Faculdade de Direito da UFPA é uma exceção nesse sentido: “Desde 2007, ela conta com a disciplina obrigatória ‘Direito Indígena e Afro-Brasileiro’ em seu Projeto Político-Pedagógico”.

Outro agravante são as discriminações de gênero que mulheres indígenas sofrem nos meios jurídicos e acadêmicos. O estudo ressalta que a colonização tem, como ponto fulcral, o racismo e a desorganização do ambiente social dos povos originários por parte dos invasores europeus. Essa desorganização veio acompanhada do estupro e de outras violências contra as mulheres indígenas, tendo consequências em seus corpos e em suas vidas até hoje. “A advogada Joênia Wapichana afirma que, em muitos espaços do Direito, ser indígena já é uma espécie de barreira, e ser indígena mulher aumenta as dificuldades, dentro do mundo indígena e do não indígena”, conta o pesquisador.

Presença indígena nas universidades traz mudanças

Agora, com a presença cada vez maior de indígenas nas universidades, o desafio é amansar e indianizar uma instituição construída pelos brancos e para os brancos, que não foi preparada para aceitar outras formas de conhecer o mundo. A presença do movimento indígena na UFPA culminou em vários eventos, entre eles o Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas: Desafios para uma Educação Superior no Brasil.

“Esse seminário foi um marco na discussão sobre formação jurídica para Povos Indígenas no ensino superior. Foi organizado pela UFPA, em parceria com o Laboratório de Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (Laced), do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As discussões do seminário perpassaram a questão curricular das Faculdades de Direito; as dificuldades dos estudantes indígenas com relação à permanência nas instituições e a não consideração dos sistemas jurídicos indígenas nas disciplinas”, conta o pesquisador.

Os encaminhamentos do seminário estimularam realizações concretas no âmbito da UFPA. Em 2009, foi aprovado o Processo Seletivo Especial (PSE) para Povos Indígenas, com um sistema de reserva de vagas em todos os cursos da UFPA. Em 2011, no Campus de Altamira, houve a abertura do curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento, que recebe apenas estudantes oriundos de povos e comunidades tradicionais. “Apesar da conjuntura adversa em que vivemos, acredito que a tendência é que existam cada vez mais pessoas indígenas formadas em Direito e, por consequência, o aumento dessa prática de advocacia. Penso que teremos uma discussão mais próxima em outros países da América Latina, sobre o pluralismo jurídico”, avalia Breno Cavalcante.

Biografias

  • Luiz Henrique Eloy Amado (FOTO acervo da pesquisa): Luiz Henrique Eloy Amado

Nascido em 1988, na aldeia Ipegue (Terra indígena Taunay/Ipegue), Eloy é

indígena Terena. Ele é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Dom Bosco (UCDB), advogado, mestre em Desenvolvimento Local em Contexto de Territorialidades, também pela UCDB (2014), e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, Eloy trabalha como assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

  • Ricardo Weibe Nascimento Costa (FOTO acervo da pesquisa: Ricardo Weibe Nascimento Costa)

Weibe é indígena do povo Tapeba e advogado, tendo nascido em 8 de junho de 1983, na aldeia Lagoa dos Tapeba I, localizada no hoje município de Caucaia, Ceará. Filho de Dourado Tapeba, liderança tradicional, Weibe, desde muito jovem, acompanhava seus pais nas assembleias e reuniões do movimento indígena.  Weibe Tapeba, como é conhecido, obteve grau de Bacharel em Direito pela Faculdade Integrada da Grande Fortaleza (FGF), em 2015. Atualmente, faz parte da Coordenação dos Povos Indígenas do Ceará (Copice) e é conselheiro titular do Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural e do Conselho Estadual de Direitos Humanos.

  • Paulo Celso de Oliveira (FOTO acervo da pesquisa: Paulo Celso de Oliveira)

Também conhecido como Paulo Pankararu, o advogado nasceu em 1971, na terra

indígena Pankararu, situada entre os hoje municípios de Tacaratu e Petrolândia (PE). Paulo é o primeiro indígena advogado do Brasil. Ele obteve o grau de bacharel em 1994, pela Universidade Católica de Goiás (UCG), e fez sua inscrição na OAB em 1995. Paulo é mestre em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). É sócio-fundador do Escritório Dora, Azambuja e Oliveira – Advocacia de Direitos Humanos, sediado em Curitiba (PR), por meio do qual presta assessoria jurídica a organizações indígenas e a grupos vulneráveis, como mulheres, LGBTs, negros(as), crianças, adolescentes e pessoas com deficiência.

Ed.153 - Fevereiro e Março de 2020

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