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Opinião

Publicado: Terça, 23 de Março de 2021, 17h06 | Última atualização em Terça, 23 de Março de 2021, 17h06 | Acessos: 824

Políticas de morte e o valor da vida

imagem sem descrição.

Por Leandro Lage Ilustração CMP / ASCOM

A confrontação com a morte e, ao mesmo tempo, com a indiferença em relação à vida tem sido uma das duras lições da pandemia da Covid-19. Mesmo que estejamos todos diante do risco fatal, sofrendo com a perda de pessoas queridas, testemunhamos diariamente comportamentos, discursos e políticas indiferentes à morte. Essa experiência de viver à beira do abismo, contudo, sempre existiu para parte de nós. A vulnerabilidade é uma condição elementar de nossa existência, mas as condições de vulnerabilidade são historicamente distribuídas de modo desigual entre as populações: pobres e ricos, negros e brancos... E se a base de sustentação da política é a vulnerabilidade humana, então temos que assumir que formas de governo cúmplices dessa distribuição das condições de vulnerabilidade e de risco de morte empreendem, na verdade, aquilo que o filósofo camaronês Achille Mbembe chama de "necropolítica".

O ódio racial, o sexismo, a homofobia, a desumanização, as invisibilidades e os silenciamentos, entre outras tantas formas de desrespeito e violência, tudo é prática ou estratégia condizente com uma política de morte. Por mais que nem todo racista invada favelas atirando ou queime indígenas, nem todo machista cometa feminicídio, nem todo homofóbico espanque travestis até a morte, aquelas são maneiras de negar o outro, de matar o outro simbolicamente, de aniquilar sua existência social e seu valor enquanto vida que merece ser vivida. Não é difícil perceber isso. Por mais que nossa história de colonização seja pródiga em episódios de escravização e genocídio, basta olharmos à nossa volta e nos perguntarmos, com certa sinceridade: "Quem conta como sujeito?" A essa indagação, subjaz outra: "Quais vidas são, de fato, qualificadas como vidas, como existências dignas de serem vividas?"

A filósofa estadunidense Judith Butler, agredida quando esteve no Brasil, em 2017, e, até hoje, acusada de disseminar a mitológica "ideologia de gênero", definiu, de forma dramática, o funcionamento de nossas opressões normativas e desigualdades estruturais. "Na verdade, uma figura viva fora das normas da vida não somente se torna o problema com o qual a normatividade tem de lidar, mas também parece ser aquilo que a normatividade está fadada a reproduzir: está vivo, mas não é uma vida", escreveu Butler, ou seja, nossas estruturas sociais não apenas se reproduzem para que se mantenham firmes em sua gênese colonizadora, como também o fazem pela negação da vida do outro. Essa negação nem sempre é evidente. Ela aparece, principalmente, nos enquadramentos simbólicos em que as pessoas aparecem (ou são apagadas). Na imprensa jornalística, na publicidade, nos filmes, séries, novelas... Na academia, na literatura, mas também em nossa vida cotidiana mais ordinária: no humor, na linguagem, nos gestos, nos olhares.

A precariedade de certas vidas, ensina Butler, designa "a condição politicamente induzida" na qual certas pessoas e mesmo populações inteiras sofrem com infraestruturas de vida deficientes e, assim, ficam mais expostas às violações e à morte. Portanto estamos falando da maximização da precariedade para certas populações. E nós sabemos quais são. Basta olharmos os jornais para sabermos quem está mais sujeito a morrer, a ser estuprado, a ser agredido fortuitamente só por trocar afeto em público, a ter sua terra invadida ou dela ser expulso, e quem corre riscos bem menores. Caberia, então, ao Estado e aos governos mitigar essas condições de vulnerabilidade e garantir redes de infraestrutura, proteção e apoio. Mas e quando o Estado é o principal acionista das iniciativas necropolíticas? O Estado torna-se, nesse caso, aquele contra o qual as próprias pessoas precisam de proteção.

O racismo, diz Achille Mbembe, é o "motor do princípio necropolítico". Essa política, traduzida em discursos e práticas, realiza uma forma organizada de destruição. Por um lado, reduz-se o valor de certas vidas. E as acusações de "mimimi", de "vitimismo" às menores manifestações de resistência são as formas mais tacanhas dessa desrealização do outro, dessa tentativa de torná-lo irreal e menosprezá-lo. Por outro lado, cria-se o hábito da perda, pois, segundo essa fórmula, uma vida que não é considerada como tal jamais poderá ser morta. Sua morte não é sentida e não constitui nenhum sacrífício. Até quando vamos ser cúmplices de uma política de morte? Quando vamos assumir que a construção de modos de vida em comum mais justos e menos desiguais requer uma desconstrução de si, uma descolonização de nós mesmos? Nessa triste experiência coletiva de sofrimentos e perdas, seremos capazes de reaprender o valor da vida do outro e o de nossa própria?

Leandro Lage é professor da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da UFPA. Coordena o Grupo de Pesquisa em Comunicação, Estética e Política (Cepolis) e o Projeto Levantes amazônicos: dimensões estéticas e políticas das imagens da resistência. E-mail: leandrolage@ufpa.br.

Beira do Rio edição 158

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