Demografia, trabalho e liberdade em Belém
Tese reflete sobre escravidão negra e presença na sociedade
Texto e ilustração por Walter Pinto
Quando o folclorista e historiador Vicente Salles publicou, em 1971, O negro no Pará sob o regime da escravidão, a tese em voga, segundo a qual a quantidade de negros escravos na Amazônia não foi suficiente para determinar uma dinâmica social relevante, começou a ser revista. Ao trazer números e argumentos que contrapuseram a tese do vazio demográfico, o livro tornou-se um clássico e estabeleceu uma linha divisória nos estudos sobre a escravidão negra no Grão-Pará, servindo de referência quase obrigatória aos estudos que se seguiram sobre o tema.
Depois dele, outros estudos igualmente importantes aprofundaram questões referentes à presença negra na Amazônia. A antropóloga Anaíza Vergolino publicou, em 1990, A presença africana na Amazônia Colonial. O historiador José Maia Bezerra Neto escreveu Escravidão Negra no Grão-Pará, cuja primeira edição é de 2001. A partir de então, os estudos sobre a escravidão negra na Amazônia ganharam impulso, como atesta o acervo de dissertações e teses do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPGHist/IFCH) da UFPA.
Um dos mais recentes é a tese de Bárbara da Fonseca Palha, Escravidão de origem africana em Belém: um estudo sobre demografia, mestiçagem, trabalho e liberdade (1750-1850), defendida em 2019, a qual conquistou o segundo lugar na sétima edição do Prêmio Professor Benedito Nunes, que premia teses nas áreas de Letras, Comunicação, Arte, Filosofia e Ciências Humanas da UFPA.
Professora da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), com experiência no ensino superior, Bárbara Palha estuda a escravidão desde a graduação, quando pesquisou as fugas escravas em Belém, no contexto das leis emancipacionistas. No mestrado, focou na primeira metade do século XIX, dentro da perspectiva de que, nas décadas de 1820 e 1830, a maioria dos habitantes da capital era de escravos. A dissertação trouxe questões que seriam ampliadas no doutorado a respeito da demografia, das modalidades de trabalho, das transações comerciais e das estratégias de fuga e resistência. Em todos os níveis de estudo, Bárbara foi orientada pelo professor José Maia Bezerra Neto.
Segundo a autora, sua tese redimensionou a dissertação em vários aspectos, a começar pelo recorte temporal, que passou a abranger cem anos de duração, de 1750 a 1850. Também ampliou o número de fontes, especialmente os inventários post-mortem consultados no Arquivo Público do Pará e no Centro de Memória da Amazônia, e a documentação encontrada no Arquivo Histórico Ultramarino. Bárbara Palha ampliou o foco sobre a história das mulheres escravizadas em Belém. “Elas perpassam toda a tese, desde a introdução até a conclusão. Estão envolvidas em questões como tráfico, demografia, mundo do trabalho e busca pela liberdade”, destaca a pesquisadora.
Escravidão negra no Grão-Pará e identidade paraense
Quanto à relevância da tese para os estudos acerca da escravidão negra no Grão-Pará, Bárbara Palha destaca a possibilidade de uma reflexão a respeito da identidade paraense em termos cultural, econômico e político. Segundo ela, a demografia sobre os escravos africanos em Belém “demonstra não ser mais possível pensar, aliás, como há muito tempo, que os povos de origem africana não exerceram influência importante na formação da identidade paraense, amazônica”.
Quando remonta ao século XVIII, a pesquisadora busca entender a origem da presença negra em Belém, em função da atividade do tráfico que ganha força com a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Os dados demográficos mostram que a Companhia alavancou a quantidade de negros escravizados em Belém. No século XIX, com a Companhia já extinta, os números mantiveram-se, chegando mesmo a se tornar ligeiramente superiores aos de habitantes livres, caso específico das décadas de 1820 e 1830. Bárbara explica que, apesar das leis antitráfico de 1815, 1831 e 1850, a população negra escravizada se manteve por conta da reprodução endógena e do tráfico interno.
“Gosto muito de pensar na força dessa presença, na vontade e na capacidade de negociação política da população negra em Belém por meio da história da Igreja de N. S. do Rosário dos Homens Pretos, assim como da Irmandade que lhe deu sustento por três séculos, muito por conta da vontade de seus fiéis, apesar de ser caracterizada nas fontes por sua ‘impropriedade, aperto e indecência’ para a realização das coisas religiosas”, informa.
Segundo a pesquisadora, a Igreja do Rosário foi um espaço de maior representação da presença dos habitantes negros de origem africana em Belém em, pelo menos, três sentidos – religioso, pela fé e devoção; arquitetônico, por manterem de pé o templo por tanto tempo; político, pela possível negociação com seus proprietários para a compra de materiais de construção, quando não retiraram dinheiro de suas próprias economias. “O caso da Igreja do Rosário expressa a presença negra, a vontade e a autonomia daqueles sujeitos”, ressalta.
Outra contribuição da tese diz respeito à busca por liberdade, dentro do próprio sistema escravista, “por meio dos requerimentos de liberdades, mais comuns no século XVIII, envolvendo a justiça régia, e das ações civis de liberdade, mais comuns no século XIX, resolvidas numa instância local, nos juizados”, destaca a autora. São formas legítimas de busca pela liberdade, “mas revelam muito sobre as brechas do sistema e sobre as ações dos escravizados que agiam em momentos favoráveis na busca de solução que fosse mais definitiva possível em favor da liberdade”, esclarece.
A história da escrava Alexandrina Francisca da Trindade
Segundo Bárbara Palha, as mulheres foram protagonistas das estratégias em busca da liberdade, seja acessando a justiça em favor delas próprias e de seus filhos ou de parentes como mães e tias, “o que demonstra também as redes de sociabilidades constituídas nos cativeiros”.
É o caso da escrava Alexandrina Francisca da Trindade, que, em julho de 1835, conseguiu a liberdade do filho Prudêncio em pia batismal, durante a Cabanagem. No momento em que tantos outros escravizados escolheram fugir ou lutar, Alexandrina escolheu libertar o filho e permanecer em cativeiro, por conta de uma promessa de liberdade recebida por seus proprietários após a morte deles, o que foi registrado em testamento. No entanto, passados dez anos, Prudêncio estava sem a carta de alforria e corria riscos, pois os proprietários da mãe haviam falecido e ele podia cair na herança dos órfãos junto com a mãe. Então, neste momento, Alexandrina se muniu de todos os documentos possíveis que comprovavam a liberdade do filho e dela própria e acessou a justiça. Conseguiu liberdade para ela, para o filho, para a mãe e para a irmã, recorrendo ao meio “legítimo”, mas possivelmente deixando contrariados os herdeiros do antigo senhor de escravo.
A história de Alexandrina contribui também para a reflexão sobre o uso e significado de termos impostos pela cor da pele quando da transposição da situação de escravo para liberto. Enquanto cativa, em todos os documentos produzidos pelos seus senhores e pela Igreja, Alexandrina foi classificada como “escrava” e “mulata”. Já nas ações de liberdade que moveu, aparece classificada como “parda” e “parda liberta”. A leitura que a pesquisadora fez disso foi a de que ela se autodeclarou parda como forma de se inserir no mundo pós-escravidão, que era diferente para quem era parda ou mulata, ainda que houvesse barreiras para todos aqueles classificados como não brancos.
Beira do Rio edição 159
Redes Sociais