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Opinião

Publicado: Quinta, 01 de Julho de 2021, 21h52 | Última atualização em Quinta, 01 de Julho de 2021, 21h52 | Acessos: 1418

Universidade Pública: Cidadania, Ciência e Solidariedade (*)

imagem sem descrição.

Por Cristovam W P Diniz Foto Alexandre de Moraes

Neste mosaico de terra e água que continua distante do epicentro da produção de conhecimento, é esplêndido ver o quanto caminhamos. Quase contra tudo, gerações de jovens e velhos professores continuam a “arregaçar as mangas” em compromisso permanente com a causa do desenvolvimento e avançam contra quase qualquer dificuldade para construir uma Amazônia digna. Com eles, a Universidade Federal do Pará abraça lentamente este continente através de seu vasto programa de interiorização, de ontem e de hoje, a origem e o motor da criação de novas universidades amazônicas, todas comprometidas com o desenvolvimento das ciências, das letras e das artes deste estado gigante.

Da educação infantil à pós-graduação avançada, foram eles, os professores, que disponibilizaram as ferramentas da transformação, inspirando as mudanças necessárias. A eles, devemos a condução de gerações sucessivas em direção à literatura, às ciências, à música e aos demais domínios das artes. A eles, devemos a formação do corpo técnico especializado necessário à construção das cidades, à expansão da vida e a sua melhoria.

A experiência acumulada dos professores amazônicos, ao longo dos anos, revela que não há simplesmente a quem recorrer.... Aqui, diferentemente do que acontece onde as facilidades já estão instaladas, a fixação de grupos de docentes/pesquisadores promissores, em municípios que abrigam os campi do interior, exige das lideranças que reúnam múltiplos talentos: é preciso manusear o arado para revolver a terra seca, semear, regar e replantar sempre que a tempestade anuncia a hora. A postura contemplativa da paisagem tem que ser substituída pelo registro das observações em todos os domínios. No domínio da vida, por exemplo, fungos, folhas, raízes, flores e frutos, macro e microfauna nos cursos d’água e nas florestas, mamíferos e aves já não podem passar despercebidos e precisam ser contabilizados.   

Guiados por Docentes-Pesquisadores de diferentes especialidades, atuando de forma complementar em diferentes domínios, é preciso garantir que os alunos aprendam a construir conhecimento novo num lugar isolado, onde tudo ou quase tudo, nessa esfera, está por ser construído. É preciso remover obstáculos, buscar parceria com o executivo municipal, convencer as agências de fomento à pesquisa e ter senso de oportunidade para aplicação coerente da experiência acumulada, em um projeto integrado com as comunidades locais. É necessário, para lograr êxito nessa empreitada, que coabitem com igual vigor, capacidade de liderança, competência e resistência à burocracia cega, ao isolamento científico e ao financiamento espasmódico. Esse é o divisor de águas que distingue, de verdade, as universidades que ensinam porque produzem conhecimento.

Por essa razão, costumo dizer que a Universidade Federal do Pará é o maior investimento humano da Amazônia brasileira.

Além disso, para nos apropriarmos das conquistas humanas em escala maior, ultrapassando os limites geográficos e temporais, e provermos os meios que a revolução científica e tecnológica disponibilizou através da internet, há que educar de forma continuada e em larga escala, disseminando o acesso à rede mundial de computadores a todos os amazônidas. Só assim nos habilitaremos a visitar e compreender as conquistas humanas de nossos irmãos de outras terras, outras línguas e culturas. Somos nós a Amazônia, cada um de nós e todos nós.

Seu desenvolvimento depende do desenvolvimento de suas universidades, nas quais milhares de jovens, como vocês, buscam sua formação avançada e aprendem a cultivar os valores iluministas que permitem a construção de sociedades menos assimétricas. É a vocês, que acabam de ingressar no ensino superior, que me reporto e a quem dedico este texto.

Precisarão estar atentos e comprometidos com o combate às assimetrias tantas que testemunhamos... da fome de quase tudo, e mal distribuída, que nos tem acompanhado desde sempre.  A vocês que ainda se movem adiante impregnados pela força onírica e pela emoção, companheiras das grandes realizações que vão empreender, caberá, em breve, receber o bastão, correr adiante e participar da luta pela construção e proteção das nossas escolas, em todos os níveis, garantia única de cidadãos livres e senhores de seu próprio destino. Saibam que, sem quadros técnicos bem formados e compromisso social, continuaremos ao sabor da política econômica construída para concentrar a riqueza, reforçando o modelo predatório das desigualdades.

É certo que o ingresso no ensino superior é um divisor de águas em suas vidas e é preciso começar desde já, antes que sua hora chegue e lamentem que não tenham feito.

Vivemos, entretanto, tempos sombrios, em que o Estado que deveria proteger a Amazônia, organiza a sua espoliação predatória. Asfixiando as agências de fomento à pesquisa e os centros de conhecimento, nos quais se desenham as tecnologias sofisticadas para desenvolver sem devastar, ao mesmo tempo que desestrutura os órgãos de fiscalização e controle do meio ambiente, entrega a Amazônia à exploração predatória.

Não há como se falar em desenvolvimento das regiões, sugerindo que a economia deve preceder os esforços em educação, pela simples razão de que isso é um contrassenso: não há economia desenvolvida e sustentável que tenha atingido esse estágio, sem investimento em educação para todos, como atitude preliminar.

O esforço destrutivo do ensino superior já é visível em todas as Unidades da Federação. Atira-se contra as universidades públicas e os institutos de pesquisa destituindo e perseguindo suas lideranças para instalar o retrocesso, amedrontando-as para garantir o silêncio. Sufocá-las, reduzindo seus recursos orçamentários a ponto de comprometer a manutenção de limpeza e vigilância, é o meio escolhido para arrastar consigo, inexoravelmente, o comprometimento da produção de conhecimento que se dá em larga escala no interior das universidades públicas.

O Estado que só compreende e confia na força das armas impede que os ideais e valores do Iluminismo que inspiraram a construção de sociedades mais justas sejam preservados.

No rastro desse Estado insensível nesses tempos pandêmicos, já se foram mais de 500 mil brasileiros, muitos dos quais ainda estariam entre nós, se a aquisição das vacinas tivesse recebido, em tempo hábil, a atenção necessária. Não se pode, pois, calar. Recentemente ouvimos do secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, no último 14 de abril “…This is a time for science and solidarity...” (https://www.un.org/en/un-coronavirus-communications-team/time-science-and-solidarity).

Enquanto o mundo luta contra a pandemia em curso, a desinformação e o aconselhamento prejudicial à saúde se espalham em nosso estado insensato. Tedros Adhanom, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua luta para conter a tragédia humanitária, nos deixa saber, a todo instante, que temos que combater dois inimigos simultâneos e poderosos, a pandemia viral e a peste da desinformação que se espalha mais rápida do que o próprio vírus. As pessoas estão com medo e muitas estão confusas...o cenário ideal para a necropolítica.

Para a Organização Mundial da Saúde, a segurança cibernética tornou-se igualmente peça essencial para conter essa pandemia de desinformação e crueldade (UN tackles ‘infodemic’ of misinformation and cybercrime in COVID-19 crisis | United Nations).  A aplicação de filtros pelas mídias sociais tem sido a arma a ajudar a identificar e reduzir as ações dos criminosos. Estes que encontram, no grande número de pessoas em trabalho remoto, em grupos de aplicativos de acesso livre ou frequentando aulas a distância, a paisagem ideal para o crime cibernético.

Apesar disso, o ódio e a estupidez continuam progredindo e têm contribuído para estigmatizar, difamar e confundir, ampliando o estrago e o número de covas abertas no Brasil e, mais recentemente, o número de fogueiras crematórias na Índia.

No rastro dessa dupla tragédia, o mundo chora seus mortos... para quem, em sinal de solidariedade na dor da perda, peço que me acompanhem onde estiverem, neste minuto de silêncio (pausa de 1 minuto).

Mais do que nunca, os mais frágeis e os desempregados de ontem e de hoje precisam ser alcançados para que possam se alimentar e alimentar os seus.

As vacinas, uma conquista científica que nos habilitou a combater o vírus (SarsCoV 2) em um lapso de tempo excepcional, os testes para detecção do agente causal que nos permitem evitar sua disseminação rastreando, isolando e tratando os infectados, e a imunoterapia aplicada aos casos gravíssimos, reduzindo a mortalidade, vão muito além e ao largo de sua função primeira, que é a de salvar vidas. Permitem a reativação da economia, reorganizando a pirâmide socioeconômica, trazendo esperança aos desesperados.

Para a Organização Mundial da Saúde, é hora de inundar a internet com fatos e informações baseadas em evidências, para combater o flagelo da desinformação, a mais nova forma de crueldade em curso, que, de mãos dadas com o vírus, aniquilam, mundo afora, milhares de vidas humanas.

Mas isso não basta, é preciso identificar e punir os criminosos que trabalham para ampliar a tragédia humanitária que enfrentamos. É hora de reagir com ciência, solidariedade e justiça.

Nessa corrida de revezamento que não cessa, em busca de um estado humanista, é essencial consultar os mapas, aproveitar o que foi escrito antes, rever e aperfeiçoar os caminhos de outros navegantes e devolver a solidariedade e a cidadania ao epicentro do planejamento. É preciso lembrar igualmente que esse tempo de tragédia e negação vai passar. Em sistemas democráticos, temos chances de corrigir as rotas, reverter os erros e seguir adiante.

Lembrem que, quando chegar a sua hora de carregar o bastão e decidir pelo bem comum, a solidez do que houver sido feito ao longo do caminho e a sua formação humanista serão a sua funda e a sua flor no embate com Golias. Se nessa viagem puderem rir de si mesmos, comoverem-se com a coragem de dizer não aos poderosos, entregaram-se à luta de corrigir as assimetrias da paisagem e tomá-las como norte para o seu texto e para as suas ações, talvez lhes seja dado o direito de imprimir o que escreverem.

É para lá que caminham. É esse o seu encontro programado, o desafio e o convite.

Vão e ensaiem, tantas vezes quanto necessário for. Revisitem os conselhos, confiem e desconfiem, acolham os textos dos que vieram antes de nós, mas preservem a ousadia de destruí-los se os dados apontarem na direção das ideias que investigam. Delineiem as hipóteses sem se tornarem escravos de suas ideias: deixem que os fatos falem por si mesmos ainda que contrariem a beleza e a engenhosidade de suas convicções. Deixem que vossos instrutores de voo encham seus olhos de alegria ao virem-nos nos céus a superar os seus limites, a trabalharem por uma sociedade mais justa.

Como vão poder constatar, muito tempo se passará até que empalideçam as imagens dos abraços de vossos pais e de vossos amigos, com o coração pleno de contentamento por ver-lhes o esforço redundando em êxito, ao ingressarem no ensino superior.

Saibam que, para a Universidade, é igualmente um momento único e solene, pois os recebe, a todos, neste enorme espaço virtual dos novos tempos contados em microssegundos, adequando-se às imposições destes tempos pandêmicos, para prover os meios para a conquista do futuro de cada um de vocês.

Ao me despedir, lembro mais uma vez do uso das máscaras...elas nos protegem a todos e tornaram-se, junto com as vacinas, um símbolo das conquistas científicas a serviço da humanidade nestes tempos de pandemia. 

Ao final, estendo a vocês as palavras de meu pai, que imagino possam ser apropriadas para expressar o desejo de seus pais: Dizia-nos ele quando as incertezas nos tomavam o espírito: “Tenham coragem meus filhos...Assim como enfrentaram todos estes anos de luta nos estudos, assim devem enfrentar a vida que hoje se inicia, e, ao longo dos anos, ela própria lhes trará experiência para vencerem...Que as bençãos de Deus recaiam sobre suas vidas...” 

(*) discurso proferido na Aula Magna da Semana do Calouro de 2021. Com o tema central “Universidade Pública: Cidadania, Ciência e Cultura”, a semana de acolhimento foi realizada de forma virtual e transmitida pelo canal da UFPA no Youtube.

 Cristovam W P Diniz – docente titular do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e ex-reitor da UFPA.

Beira do Rio edição 159

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