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Espaço de territorialidades mistas

Publicado: Quarta, 15 de Dezembro de 2021, 18h47 | Última atualização em Sexta, 17 de Dezembro de 2021, 20h13 | Acessos: 3248

Estudo revela importância arqueológica de São Caetano de Odivelas

A descoberta de vestígios ar­queológicos levou os pesquisadores à constatação de que a localização de São Caetano, na foz do rio Mojuim, foi privilegiada para a instalação do provável alde­amento indígena, depois transfor­mado em redução religiosa.
A fotografia mostra uma vista panorâmica e de cima da cidade de São Caetano de Odivelas. É possível ver o desenho de ruas, casas, vegetação e, na parte superior, parte da orla da cidade. Está de dia.
A fotografia mostra uma vista panorâmica e de cima da cidade de São Caetano de Odivelas. É possível ver o desenho de ruas, casas, vegetação e, na parte superior, parte da orla da cidade. Está de dia.

Por Walter Pinto Foto Acervo da Pesquisa

Apesar do intenso processo de antropização, por meio do qual os humanos vêm interferindo no ambiente, durante séculos, ao ponto de apagar vestígios históricos e arqueológicos de antigas sociedades pré-colombiana e colonial, a zona costeira paraense, na mesorregião nordeste, guarda ainda um expressivo acervo arqueológico que dá testemunho da vida daqueles povos. É o que revelam as pesquisas realizadas na região cujas praias atlânticas atraem milhares de turistas todos os anos. A diversidade de sítios e fragmentos arqueológicos encontrados não deixa dúvida sobre a existência e a mobilidade dos antigos moradores por toda a zona costeira.

No entanto a quase ausência de informações científicas e de referências bibliográficas arqueológicas sobre o município de São Caetano de Odivelas, um dos vinte municípios do nordeste paraense, pode induzir tratar-se de um enclave destituído de vestígios no meio de um vasto acervo costeiro. Mas estudos recentes realizados pelo Grupo de Pesquisas e Ações Colaborativas (Colins), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Antrópicos da Amazônia (PPGEAA), do Campus Castanhal da UFPA, negam essa possibilidade.

Os pesquisadores visitaram 11 sítios em 11 comunidades, inclusive na sede de São Caetano, e, em todos, acharam alguma materialidade em cerâmica, seja indígena, seja em faiança. As descobertas atestam a potencialidade arqueológica do município, que apresenta características fundamentais para a subsistência e o desenvolvimento de antigos grupos sociais. Os dados, ainda que parciais, revelam que a península odivelense é um repositório essencial para o estudo da história pré-colombiana e colonial na Amazônia.

Elo perdido entre indígenas Marajoara e Tupinambá

A origem do município data de meados do século XVIII, conforme documentação do Arquivo Ultramarino Português. Os jesuítas chegaram à região em 1757, já encontrando um assentamento chamado São Caetano, na foz do rio Mojuim, na confluência da baía de Marajó com o oceano Atlântico. Os pesquisadores José Guilherme dos Santos Fernandes, doutor em Letras e coordenador do Grupo Colins, e Paulo Roberto do Canto Lopes, doutor em Arqueologia, esclarecem que os colonizadores portugueses, particularmente os religiosos, dificilmente buscavam assentar-se em territórios virgens, ou seja, escolhiam espaços em que já havia assentamentos indígenas para facilitar o trabalho das congregações religiosas de catequese das populações autóctones. O lugar ainda guarda indicação dessa presença jesuíta na origem da cidade.

Os pesquisadores explicam a metodologia empregada no trabalho de campo: “Realizamos a pesquisa de vestígios arqueológicos na superfície, pois certamente houve a presença de populações humanas superpostas, dada a intensa antropização de diversos povos na área. Trabalhamos como um palimpsesto”.

A descoberta de vestígios arqueológicos levou-os à constatação de que a localização da cidade, na foz do rio Mojuim, foi privilegiada para a instalação do provável aldeamento indígena, depois transformado em redução religiosa. Mais que isso: “o município, muito provavelmente, é o elo perdido entre as populações indígenas Marajoara, a leste, e Tupinambá, a oeste, com forte indício da presença de povos Karib, em razão de toponímia relativa a este tronco linguístico, não comumente encontrada em território reconhecidamente tupi-guarani. Também podemos considerar São Caetano um espaço de territorialidades mistas, como lugar de trânsito de povos através do Salgado, em época pré-colombiana”, afirmam.

Dados contradizem estudos de 1876, 1960 e 2000

Os resultados obtidos pelos pesquisadores do Grupo Colins vão de encontro ao levantamento e ao relatório elaborados por Ferreira Pena, em 1876, que afirmam certa ausência de sítios arqueológicos no município, no que diz respeito aos sambaquis. Os estudos de Ferreira Pena serviram de pesquisa básica para Mário Simões, na década de 1960, cuja pesquisa reforçou a ideia de ausência de vestígios em São Caetano. Nos anos 2000, pesquisas conduzidas por Maura da Silveira e Denise Schaan, na região litorânea, não detectaram indícios arqueológicos no município.

Essa quase ausência de informações pode ser creditada mais à falta de pesquisas in loco do que à inexistência de sítios e vestígios, garantem os pesquisadores do Colins. Durante o trabalho de educação patrimonial colaborativo, realizado, desde 2019, com jovens estudantes odivelenses e com a população local, os pesquisadores foram informados da existência de sítios no município, fato comprovado com a localização do primeiro deles, que recebeu a denominação Cachoeira, ao qual foram acrescidos mais dez sítios. Atualmente, o projeto arqueológico está em análise pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

O Grupo de Pesquisas e Ações Colaborativas foi constituído em 2018, inicialmente para atender a orientandos (as) do Programa de Pós-Graduação em Estudos Antrópicos da Amazônia (PPGEAA), do Campus de Castanhal. “Em razão do recorte notadamente de pesquisa-ação colaborativa, optou-se por construir um grupo que tivesse mais que função acadêmica, por meio da inclusão de atores sociais e saberes não acadêmicos, por isso o recorte notadamente intercultural”, explica o coordenador, José Guilherme dos Santos Fernandes. Atualmente, participam do Colins discentes e docentes do PPGEAA e egressos de graduações e pós-graduações, inclusive de outras instituições. Em 2021, o grupo passou a contar com a participação de uma pós-doutoranda da Universidade do Estado do Amazonas.

Parcerias interinstitucionais fortalecem o PPGEAA

O PPGEAA iniciou suas atividades um ano antes da criação do Colins. É um dos programas de pós-graduação mais novos da UFPA. No entanto apresenta uma considerável produção, tendo já estabelecido diversas parcerias. Em quatro anos, foram defendidas em torno de vinte dissertações, e seu quadro docente é constituído por 12 professores efetivos e dois colaboradores, em parceria com pesquisadores da UERJ, da PUC-Rio, da UFSC, da UEA, da Unicamp, da UFPE, da Unifap e da Argentina, da Guiana Francesa, do Canadá e de Portugal.

José Guilherme Fernandes e Paulo do Canto explicam que a pesquisa arqueológica é, por natureza, interdisciplinar, “mesmo que haja o acento em materialidades que, em princípio, requerem trabalhos geológicos, botânicos, físico-químicos. Mas somente o vestígio não nos diz da pertinência da existência e da função de dada materialidade, sendo necessário o levantamento de dados históricos, antropológicos e linguísticos”.

Eles entendem que “tratar do passado é um desafio do presente perante a academia, pois o exercício interdisciplinar é uma constante, seja em campo, seja nas análises laboratoriais, isso sem falar na necessária interpretação de documentos escritos e dos relatos orais dos habitantes do lugar, cuja colaboração é determinante para darmos sentidos às descobertas”.

Para além do trabalho estritamente arqueológico, os pesquisadores do Colins consideram que o destino dos achados deve ser pensado como uma ação de educação patrimonial e de necessária formação da população local em termos de gestão de seu patrimônio. “Os aspectos colaborativos e integrativos com a comunidade, na partilha das informações provenientes da pesquisa arqueológica, demonstram a importância desses estudos para a sociedade como um todo, para a história da Amazônia e para as relações entre as práticas culturais atuais e aquelas realizadas pelos povos originários, que formaram sambaquis e sociedades hierarquizadas há milênios”, afirmam.

Os sambaquis são montículos com estratigrafia complexa, formados por materiais variados, entre os quais, conchas de moluscos, vestígios de vertebrados, fragmentos cerâmicos, que indicam marcadores de territórios usados, geralmente localizados na borda de mangues e nas margens de rios e furos.

Beira do Rio edição 161

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