Ir direto para menu de acessibilidade.

GTranslate

Portuguese English Spanish

Opções de acessibilidade

Página inicial > 2022 > 162 - março, abril e maio > Entrevista: Alcântara: novos acordos e velhas ameaças
Início do conteúdo da página

Entrevista: Alcântara: novos acordos e velhas ameaças

Publicado: Terça, 15 de Março de 2022, 17h55 | Última atualização em Quinta, 31 de Março de 2022, 19h55 | Acessos: 1608

800 famílias devem ser remanejadas para ampliação da base espacial

Davi Pereira Junior
#ParaTodosVerem: Fotografia mostra um homem negro, de cabelos curtos, vestindo blusa branca. No fundo, um banner do 10º Fórum Social Pan-Amazônico.
#ParaTodosVerem: Fotografia mostra um homem negro, de cabelos curtos, vestindo blusa branca. No fundo, um banner do 10º Fórum Social Pan-Amazônico.

Por Walter Pinto Foto Alexandre de Moraes

Na cidade de Alcântara, no estado do Maranhão, moram 22 mil pessoas em 208 comunidades quilombolas que vivem da pesca e da agricultura familiar. Na década de 1980, o governo militar decidiu remanejar parte das famílias para implantar a Base Espacial de Alcântara. Os remanejados foram instalados em área distante do mar e de solo arenoso, imprópria para o cultivo. Em 2019, os governos brasileiro e norte-americano firmaram um acordo por meio do qual a base passou para controle dos Estados Unidos. Há risco de remanejamento de mais 800 famílias a fim de abrir espaço para a ampliação que os americanos planejam. Durante evento realizado em Belém, o historiador Davi Pereira Junior, mestre em Antropologia e doutor em Estudos Latino e Afro-Americanos, falou ao Jornal Beira do Rio sobre o drama dos quilombolas de Alcântara, expostos às consequências de um grande projeto que não dispõe, sequer, de um relatório de impacto ambiental e que ameaça profundamente suas vidas.

Herança dos governos militares

A Base Espacial de Alcântara é uma herança dos governos militares, mas não é um projeto espacial estritamente militar. A base tem também participação de uma série de instituições de controle civil, entre as quais, o INPE. A onda desenvolvimentista dos anos 1980 levou o governo militar à construção de um projeto espacial megalomaníaco, para concorrer, imagine só, com os Estados Unidos e a União Soviética, as duas superpotências na corrida espacial daquele período. No começo, o Brasil teve uma boa relação com os Estados Unidos. Não por acaso, o primeiro veículo lançado pelo Brasil resultou de uma parceria com os americanos e chamou-se Nike. O governo brasileiro levou em conta a localização estratégica de Alcântara para construir a base. Alcântara está a 2° da linha do Equador, o que possibilita os veículos espaciais entrarem mais rápido na órbita da terra, com uma economia de 15 a 30% de combustível. Veja só, 30% de combustível espacial é muita coisa!

Violação à soberania nacional

Em Alcântara, o Estado Brasileiro negou o direito de consulta às comunidades quilombolas lá residentes. Elas se organizaram ao longo do tempo, sobretudo durante o processo de Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), assinado entre Brasil e EUA, por meio do qual o Estado Brasileiro liberou a Base Espacial de Alcântara para uso dos norte-americanos. Antes mesmo da votação do acordo no Congresso Nacional, as comunidades protocolaram nos órgãos do governo federal um pedido para a realização de uma consulta pública. Também solicitamos audiência com o governo do Maranhão. Fomos ao Congresso, levamos o protocolo, tentamos iniciar uma conversação, porque, a nosso ver, é fundamental o estabelecimento de diálogo com a sociedade para saber o que ela pensa sobre o acordo.

Entendemos que, em Alcântara, os atingidos estão lá, mas se trata de uma questão nacional. Diz respeito a Belém, a toda a Amazônia, ao Estado Brasileiro. É uma questão de soberania nacional. Como é que os Estados Unidos podem dizer que vão trazer equipamentos e caixas fechadas que, para ter acesso ao conteúdo, o governo brasileiro precisaria de autorização prévia? Como os Estados Unidos irão manter uma estrutura dentro de outro país, onde o Estado-Nação não tem direito de conhecê-la? Se isso não for violação de soberania, não sei o que é.

Potencial da Base Espacial

Não podemos esquecer que a localização da Base de Alcântara pode facilitar ações puramente militares, como a intercepção de qualquer míssil no Atlântico ou no Pacífico. Minha tese é que a escolha de Alcântara se deu porque a cidade é o local brasileiro mais perto da Europa e dos Estados Unidos. Se você tivesse que construir um aeroporto internacional de trânsito, teria que ser em Alcântara. Não seria lógico construir em São Paulo, por exemplo. Suspeitamos que essa finalidade seja prioridade para os americanos. Se quiserem fazer esse uso da base, eles vão fazer, porque tem o acordo na mão.

Consulta X Audiência

A sociedade brasileira precisa ser ouvida sobre os rumos de Alcântara, mas o Estado Brasileiro transformou a audiência pública em um rito, ou seja, uma obrigação que tem que cumprir, mas não tem que seguir. E mais grave ainda: o Estado promove audiência quando quer, sem que a comunidade possa definir local, hora e data. Então, o Estado pode usar essa audiência como estratégia para dizer: “ah, nós fizemos a audiência pública, mas não foi ninguém ou ninguém teve o interesse de comparecer”. Por isso queremos uma consulta pública livre, prévia e informada na Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Diferentemente da audiência, a consulta dá às comunidades quilombolas autonomia de marcar hora, data e lugar adequados para a realização, cabendo ao Estado Brasileiro ouvir e seguir o que foi decidido. Outra diferença se refere ao momento. No caso da audiência pública, o Estado Brasileiro pode realizá-la depois que o projeto foi iniciado. É ele quem decide. Na consulta, ela tem que ser feita antes, porque é preciso saber se a comunidade quer ou não dar início ao processo.

A questão dos remanejamentos

Os americanos precisam de mais espaço para montar a estrutura que planejam. Querem que o governo brasileiro remaneje cerca de 800 famílias da área. Veja, na década de 1980, quando teve início a construção da base, houve o remanejamento de 312 famílias. Elas foram colocadas em agrovilas nas cercanias do projeto. São famílias quilombolas pesqueiras que viviam basicamente da pesca e da roça. A região para onde foram remanejadas possui solo arenoso e impróprio para a agricultura, está localizada muito longe do mar, a quase 18 km da área de pesca.

Para piorar, o Estado Brasileiro fez um acordo se comprometendo em ajudar as comunidades, mas não cumpriu nenhuma promessa. Os investimentos em agricultura familiar, a mecanização da produção, o fornecimento de alimentos (cestas básicas) durante um ano, entre outros compromissos, nada disso foi cumprido. O remanejamento ocorreu sob a justificativa de que a base precisava de espaço e a presença dos moradores configuraria um risco no período dos lançamentos, chamado de “janelas”, que pode durar de um dia a três semanas. O governo até cogitou manter as famílias na área, mas, no período das “janelas”, elas seriam deslocadas para hotéis e outras áreas mais distantes. Imagine, você, os moradores ficarem três semanas fora de suas casas, longe das plantações e dos animais. Isso seria impossível!

Relatório de impacto ambiental

Em Alcântara, a construção da base espacial não foi precedida de um relatório de impacto ambiental. Tudo foi feito às escuras. Não sabemos o que irá acontecer com as populações quilombolas, quais as consequências dos lançamentos. Todos os foguetes que são lançados caem no mar, no intervalo entre o Maranhão e o Ceará. Um deles, inclusive, caiu a apenas 70 km de Fortaleza. O comando da base diz que é um risco controlado, pois, quando o foguete sai de rota, ele é explodido. No entanto, em 2003, um foguete VLS explodiu no chão, provocando a morte de quase toda a massa intelectual da base. Uma coisa absurda!
Dos 23 cientistas, colocaram 21 num foguete carregado. Qualquer faísca poderia causar uma explosão. E foi o que aconteceu. As famílias dos mortos nunca receberam explicação alguma. Perdeu-se uma massa intelectual que poderia propiciar ao país um desenvolvimento científico e tecnológico. 40 anos de formação de conhecimento foram desperdiçados por descuido de alguém, em um minuto. Muitos morreram carbonizados, irreconhecíveis. O acidente não afetou as comunidades quilombolas porque o foguete não se desprendeu. Como estava inclinado, se alçasse voo, poderia atingir a comunidade que estivesse em sua rota.

Estrutura atual na base

No lugar antes ocupado pelas famílias quilombolas na década de 1980, foram construídos um aeroporto, um centro tecnológico, uma plataforma de lançamento de foguetes, um quartel e uma vila militar para os oficiais morarem. Mas ninguém mora lá, preferem São Luís, porque dispõem de aviões e lanchas diariamente. Toda a área agora prevista para ampliação, em torno de 12 mil hectares, é de praias paradisíacas. A ampliação também envolve a construção de resort e coisas do gênero. Então, é um projeto casado para tirar as pessoas do lugar e abrir espaço para turistas. O pessoal da base não gera nenhuma economia para Alcântara.

Beira do Rio edição 162

Fim do conteúdo da página