Opinião
O centenário songbook religioso do Padre Lehmann
Por Fernando Lacerda Simões Duarte Ilustração CMP
O ano de 2022 marca o centenário da primeira edição da coletânea de cantos católicos intitulada Harpa de Sião, organizada pelo padre verbita alemão João Batista Lehmann (1873-1955). Ela se tornou a mais difundida nas igrejas do Brasil, na primeira metade do século passado. No Pará, por exemplo, sua presença foi percebida na Catedral de Óbidos, na Capela do Hospital Dom Luiz I (Beneficente Portuguesa) e em arquivos pessoais de instrumentistas. Já na Catedral de Manaus, partes instrumentais avulsas manuscritas foram produzidas com base na coletânea.
A Harpa de Sião se adequava, ao mesmo tempo, às prescrições da Cúria Romana para a música religiosa – de se afastar das características musicais da ópera, aproximando-se do referencial do canto gregoriano. Os paradigmas composicionais do período se situavam no contexto da Restauração musical católica e da Romanização, cujos pressupostos eram o reforço à autoridade papal e à hierarquia religiosa, a centralização das atividades religiosas no clero e, não raro, a repressão a algumas devoções populares nas quais consideravam haver “abusos”. Um aspecto relevante na difusão desse novo modelo de catolicismo foi a imigração de religiosos de diversos países europeus para o Brasil, entre eles, os da Sociedade do Verbo Divino, inclusive João Batista Lehmann.
Antes de publicar a Harpa de Sião, o religioso já contribuía com a Revista Vozes, dos franciscanos de Petrópolis-RJ, tendo publicado, em 1917, duas partituras: uma de suas composições mais conhecidas até hoje, Hóstia Santa, Imaculada, e um arranjo para banda de música, de Honra, gloria, louvor sempiterno, melodia popular alemã, com poesia de Amélia Rodrigues, o qual viria a ser incorporado de maneira literal e em uma versão para canto e órgão na Harpa de Sião.
Lehmann foi precedido por outros religiosos que propuseram coletâneas semelhantes: Hosana! e Cecilia, publicadas pelos frades franciscanos Pedro Sinzig e Basílio Röwer; Canticos espirituaes e Canticos sagrados, pelos religiosos da Congregação da Missão. Embora muitos cânticos das coletâneas dos padres da Missão ainda se alinhassem ao paradigma operístico, Lehmann selecionou nelas alguns que julgava apropriados aos serviços religiosos. No artigo Canticos Christaõs, ou os Hymnos mais Celebres do Officio Ecclesiastico, traduzidos em portuguez: uma chave para a compreensão das continuidades no uso da língua portuguesa na música religiosa católica, publicado na revista Opus, analisamos uma fonte datada de 1800, que, diferentemente das demais coletâneas, trazia somente os textos dos cantos em vernáculo, muitos dos quais foram depois incorporados por Lehmann.
Apesar das profundas mudanças musicais e litúrgicas decorrentes do Concílio Vaticano II (1962-1965), muitos cânticos contidos no centenário “songbook” de João Batista Lehmann ainda têm lugar nas memórias dos fiéis e nas práticas musicais do presente. Rememorar sua história é um dos muitos vieses da musicologia histórica no presente, não mais centrada apenas em grandes obras musicais e na busca pela construção de um cânone de compositores nacionais, mas reconhecendo o valor da produção e das práticas musicais locais. Esse tipo de história é produzido graças à pesquisa arquivística in loco, em instituições religiosas, bandas de música, entre outras. Para colaborar com a conservação preventiva dos documentos musicográficos recolhidos a tais instituições, mas também produzir fotografias digitais deles e estudá-los, foi criado, em 2021, o DoMus – Laboratório de Documentação Musical da UFPA, sediado pela EMUFPA.
Fernando Lacerda Simões Duarte – bacharel em Direito e em Música (Composição e Regência). Mestre e doutor em Música pela Unesp. Áreas de atuação: musicologia histórica, acervos musicais brasileiros, música na Amazônia. E-mail: fernandolacerda@ufpa.br
Beira do Rio edição 163
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