No meu corpo mando eu?
A violência obstétrica como efeito das narrativas na sociedade
Por Leandra Souza Foto Alexandre de Moraes
Qual a extensão da brutalidade do patriarcado? Essa pergunta abre espaço para inúmeros debates e inquietações relacionados às diversas formas de violência a que as mulheres são subordinadas, em uma sociedade, infelizmente, fundamentada em padrões machistas e heteronormativos. A escritora estadunidense Rebecca Solnit afirma, em seu livro Os Homens Explicam Tudo Para Mim, que, atualmente, existe uma “pandemia” de violência dos homens contra as mulheres. Esse pensamento pode ser validado por meio das várias situações de exploração e agressão a que as mulheres são submetidas.
Foi com base nesses questionamentos derivados dessa violência contra as mulheres que a psicóloga Alaiana Menezes da Silva buscou estudar sobre um período de extrema importância na vivência feminina: a gestação e o parto, o qual, apesar de se tratar de um momento especial, não se isenta de sofrer inserções de normativas patriarcais. A dissertação da pesquisadora, Gestação, Parto e Violência Obstétrica: narrativas de mulheres sobre as práticas assistenciais de saúde na cidade de Bragança (PA), apresenta uma análise inserida no campo das práticas discursivas, com enfoque na perspectiva interacional da produção de sentido.
“Ao falar em produção de sentido, estamos entrando no campo da construção de conhecimento, que se pauta no pressuposto de que conhecer é dar sentido ao mundo, e essa dinâmica envolve as interações entre os sujeitos, as circulações de ideias, os posicionamentos em suas narrativas e discursos. As práticas discursivas evidenciam a centralidade da linguagem e os modos como cada sujeito, em suas relações do cotidiano, situadas em um contexto sócio-histórico, produz sentido. Por isso, para essa pesquisa, os discursos formulados a respeito da violência obstétrica são fundamentais para representar o sentido que cada dispositivo (instituição social) e pessoa criam ou sustentam”, afirma a Alaiana da Silva.
De acordo com a pesquisadora, que foi bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), parte de suas inquietações para a produção do estudo surgiu em virtude da sua atuação como psicóloga residente, por meio do Programa de Residência Multiprofissional da Universidade Federal do Pará (UFPA). Circunstância que lhe proporcionou observar os efeitos de um processo que deveria ser de emancipação, desenvolvimento e descobrimento feminino, mas se tornou uma experiência de dor e traumas para muitas mulheres.
Vítimas compartilharam suas histórias e experiências
A violência obstétrica pode ser ocasionada por procedimentos técnicos desaconselháveis e inapropriados, sem embasamento em evidências cientificas, por más condutas físicas e/ou verbais dirigidas à mulher no seu período gravídico-puerperal. Parte do trabalho de Alaiana era caracterizar a construção de entrevistas, com base no diálogo e no compartilhamento de histórias. Dessa forma, as informações coletadas nas conversas com as "colaboradoras'' (termo usado para identificar as mulheres que participaram da pesquisa) serviram como objeto de estudo para a dissertação.
“Para facilitar a comunicação com as entrevistadas, preparei um roteiro semiestruturado para cada uma. Depois da finalização das entrevistas, todo o conteúdo apurado foi transcrito para ser analisado. Dessa maneira, todos os diálogos foram enumerados e colocados em mapas dialógicos, pois a pesquisa foca na análise da linguagem e dos discursos utilizados, a fim de evidenciar os sentidos que as pessoas dão às suas experiências e, desse modo, produzir conhecimento”, relata a psicóloga.
Grande parte das mulheres que contribuíram com a pesquisa sequer sabia o que era esse tipo de violência e, principalmente, quais eram os seus aspectos e características. “A impressão que eu tive era de que pairava entre as entrevistadas um pensamento de dúvida. Algo que está ligado ao conceito de violência que muitas mulheres conhecem. Por isso, quando se fala sobre a violência, a primeira coisa que vem à mente é a agressão física. E algumas mulheres não sofreram essa violação, mas, quando você começa a falar as formas sutis de como a violência obstétrica ocorre e a exemplifica, parece que cai a ficha do que, de fato, aconteceu”, assegura a autora da pesquisa.
Há anos, o movimento feminista pauta debates a respeito desse tipo de violência, que está intrinsicamente ligado a uma discriminação de gênero. No entanto o acesso a informações sobre a temática é extremamente restrito, uma vez que ainda não é um assunto amplamente abordado com as gestantes durante o pré-natal. E assim abre margem para possíveis métodos e condutas contraditórias, praticadas por profissionais da área da saúde.
Dados evidenciam mostra racismo e discriminação social
Alaiana Menezes da Silva alega que a violência obstétrica é atravessada pelo preconceito de gênero, classe, cor, orientação sexual, idade, ou seja, as mulheres pobres, pretas, lésbicas, adolescentes são as maiores vítimas de procedimentos obstétricos inapropriados e agressivos. Esse cenário evidencia uma interligação entre a violência obstétrica e outras violências, tal como o racismo e a discriminação a classes sociais mais vulneráveis.
Em relação às mulheres negras, as variações de violações não se limitam apenas à cena do parto, mas estão presentes durante toda a gestação e podem se estender até o puerpério (período do pós-parto). “Elas são comumente infantilizadas, tratadas como irresponsáveis por não aderir ao pré-natal e subestimadas quanto à capacidade de compreensão das orientações, além da existência do discurso racista de que as mulheres pretas são mais fortes e que, portanto, suportam mais as dores do parto. Um tipo de pensamento que permite com que vários profissionais ignorem os pedidos das parturientes por métodos de alívio e as forcem a situações que geram intenso sofrimento”.
A pesquisa demonstra como os discursos, a linguagem e as narrativas moldam e transformam a realidade social, a partir de estruturas que reforçam a desigualdade de gênero e produzem modelos estereotipados sobre o que é “homem e mulher”. E essa particularidade é alvo de um “poder disciplinar”, orientado pela religião, pela educação, pelo direito, pela medicina e por demais instituições sociais.
O objetivo do estudo foi discutir a violência obstétrica, nomeando as violações que as mulheres sofrem na gestação e no parto, e proporcionar discussões em espaços públicos de poder que possam criar políticas de prevenção a essa violência. “Também é importante trazer a reflexão para os cursos de graduação e pós-graduação das áreas de saúde, visto que muitos profissionais ainda reproduzem práticas assistenciais sem se questionar se elas geram sofrimentos e prejuízos às mulheres e aos bebês” conclui Alaiana.
Sobre a pesquisa - Alaiana Menezes da Silva defendeu a sua dissertação pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA (PPGP), vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), com orientação da professora Jacqueline Isaac Machado Brigagão.
Beira do Rio edição 165
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