Onde tinha um rio, agora tem um lago
Após expulsão, ribeirinhos recriam comunidade em Belo Monte
Isabelly Risuenho Foto Acervo da pesquisa
A principal fonte geradora de energia elétrica, no Brasil, são as hidrelétricas. De todo o território nacional, o estado do Pará é um dos maiores produtores dessa fonte de energia e possui duas das principais hidrelétricas do país: Tucuruí e Belo Monte. A proposta da hidrelétrica é gerar energia limpa, de fontes renováveis e com baixo custo. Mas, apesar desse discurso sustentável, sua construção desencadeia processos que afetam, direta e negativamente, o meio ambiente e a população, especificamente as comunidades tradicionais. Diante desse cenário, a pesquisadora Denise da Silva Graça desenvolveu um estudo sobre os efeitos da construção do Complexo Hidrelétrico (CHE) de Belo Monte, no município de Altamira, em uma comunidade ribeirinha do Médio Xingu.
Intitulada Antes a gente tinha um rio, agora a gente tem um lago: A construção do território ribeirinho às margens do reservatório do CHE Belo Monte, a pesquisa é fruto de sua dissertação desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA/ INEAF), da Universidade Federal do Pará, e buscou analisar o processo de construção do território, isto é, as formas usadas por uma comunidade ribeirinha do Médio Xingu para reconstituir a vida em um ambiente destruído, após ser expulsa do seu local de origem em decorrência da construção da Hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior do mundo.
O estudo foi realizado na região do Palhal, situada às margens do reservatório principal de Belo Monte, onde, anteriormente à construção da hidrelétrica, viviam diversos grupos sociais. A localidade foi escolhida por ser uma das regiões em que há maior demanda para ocupações e pela familiaridade da pesquisadora com a região, a qual já realizou outros estudos no local. Além das famílias que ocuparam as margens do reservatório, também participaram da pesquisa pessoas que compõem o Conselho Ribeirinho. A fim de analisar o processo com mais profundidade, Denise da Silva Graça utilizou a observação participante e coleta de dados com entrevistas. Para a pesquisadora, o principal desafio deste estudo foi analisar um processo ainda em curso e repleto de violações dos direitos das famílias ribeirinhas.
“Este é um estudo complexo, que exigiu que as análises fossem feitas de forma interdisciplinar, observando diferentes aspectos dessa construção no novo território, mas que apontou resultados muito significativos. A pesquisa indica os recursos utilizados pelas famílias para a construção do território ribeirinho e para garantir o modo de vida tradicional, como a recomposição das relações sociais e dos grupos domésticos em um contexto de desarticulação causada pela expulsão do território original”, detalha.
Deslocamento compulsório afeta a vida das famílias
Belo Monte inundou mais de 400 km² do território tradicional dos ribeirinhos, destruindo e forçando uma reestruturação da ocupação socioespacial da região, transformando as bases físicas e sociais do território, sobretudo das territorialidades de povos indígenas e comunidades tradicionais, obrigando as famílias ribeirinhas a passarem pelo violento processo de deslocamento compulsório. As famílias ribeirinhas expulsas de seus territórios passaram a viver em outras áreas longe do rio, sem – ou quase – nenhuma assistência da empresa responsável pela obra.
O processo de desterritorialização afeta diretamente o modo de vida e de funcionamento de uma comunidade, além de perpassar por questões de o desenvolvimento e a existência de comunidades que os utilizam para locomoção, sustento e desenham seu modo de vida e de reprodução. Essas comunidades são localizadas em ambientes estratégicos e enraizados em suas tradições, culturas, religiões, modo de vida e relações sociais. Em Belo Monte, por exemplo, muitas famílias expulsas foram viver na periferia de Altamira (PA), em situação de vulnerabilidade social, mesmo quando foram indenizadas, afetando diretamente seus meios de reprodução sociocultural e existência.
Com a desterritorialização dos ribeirinhos de Belo Monte, essas famílias buscaram formas de denunciar e conseguir a recomposição. Esse processo ocorre ainda hoje, após sete anos da construção da hidrelétrica, devido à demora de a empresa responsável conseguir a Declaração de Utilidade Pública e, assim, adquirir as áreas que faltam para destinar às famílias que aguardam para ocupar as margens do reservatório.
Para as famílias que já ocupam as margens do reservatório, esse processo tem sido marcado, principalmente, por novas atribuições de significados ao espaço ocupado, com a construção de casas, terreiros, sítios e roças; a atualização dos conhecimentos tradicionais para se apropriar do novo ambiente; a descoberta de novas áreas de pesca e de uso da mata; a reconstrução das redes de parentesco e reciprocidade e o uso de valores morais e de regras sociais para a regulação do acesso aos recursos naturais escassos
Recomposição do ser, do lugar e das relações
A construção do novo território reforça a luta por direitos desses povos que, em meio ao ambiente destruído, redescobriram formas de existir e resistir. Com base nas análises, foi possível perceber dois exemplos desta nova realidade: o aparecimento de camarão no reservatório, que exigiu criatividade para aprender fazer o matapi, pescar, tratar, conservar para alimentação e tentar comercializar; e as adaptações nas canoas, para enfrentar os banzeiros (movimentos que causam ondulações) que, anteriormente, não existiam. Esses exemplos evidenciam uma profunda relação que aquela comunidade estabelece com a natureza e a forma como acessam seus conhecimentos tradicionais para criar estratégias e viver nesse novo ambiente.
Analisando as formas como os ribeirinhos se apropriam, usam, controlam e atribuem significados na reconstrução do seu ambiente, a pesquisa gerou dados relevantes sobre esse processo de recomposição do ser, do lugar e das relações dessas comunidades com o que antes era um rio e agora é um lago. Para a engenheira florestal Denise da Silva Graça, os dados coletados vão além das fronteiras pessoais e acadêmicas.
“Os resultados representam mais um argumento para repensarmos as formas de geração de energia e os efeitos causados na vida e nos territórios de povos e comunidades tradicionais antes, durante e depois do processo de construção de uma hidrelétrica na Amazônia. Também é a oportunidade de apresentar o processo de reterritorialização, pois, neste cenário, o território não é o mesmo de antes, tanto nos aspectos da organização social existente pré-Belo Monte, quanto nos aspectos ambientais. Mas, além dessas contribuições específicas, acredito que abordar esta temática, dando centralidade para a realidade ribeirinha, é uma forma de colaborar para que este processo de reconstrução territorial dos povos amazônicos não continue sendo silenciado”, finaliza a pesquisadora.
Sobre a pesquisa: a dissertação Antes a gente tinha um rio, agora a gente tem um lago: a construção do território ribeirinho às margens do reservatório do CHE Belo Monte foi defendida por Denise da Silva Graça, em 2020, no Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA/INEAF), da Universidade Federal do Pará. A pesquisa teve a orientação da professora Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos.
Beira do Rio edição 169
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