Cultura, Música, Ação!
Práticas de aprendizagem e da transmissão de saberes no Instituto Arraial do Pavulagem
Por Julia Ladeira|Foto: acervo da pesquisa
“Vou serenando e imaginando o boi azul
Balanceando com seu batalhão da estrela
E pelas ruas de Belém vira um folguedo
Vira um tesouro da cultura popular.”
(Boi Brinquedo – Arraial do Pavulagem)
O mês de junho é sinônimo de celebração no Brasil. As festas juninas invadem as ruas com bandeirinhas coloridas, comidas típicas e brincadeiras embaladas por ritmos regionais. A musicalidade desse período é marcante e, quando se mistura com a cultura paraense, as festas ganham novos ritmos e contornos. A quadra junina de Belém (PA), por exemplo, tem os seus domingos marcados pelo rio de pessoas que invade a cidade para formar o arrastão conduzido pelo Arraial do Pavulagem.
Mas, o que é o Arraial do Pavulagem? Essa é uma pergunta que a pesquisadora Tainá Façanha optou por responder de forma plural e participativa, baseada em experiências de quem vivencia o Arraial. Para ela, são as narrativas de vida que compõem o Instituto Arraial do Pavulagem (IAPav) e fornecem o verdadeiro significado dessa manifestação cultural que valoriza os saberes populares da Amazônia, como a figura do boi-bumbá, um dos elementos simbólicos centrais do Arraial, cuja história é contada pela perspectiva do imaginário da cultura indígena, negra e ribeirinha paraense.
Em sua tese, intitulada Uma escola a céu aberto: a transmissão de saberes do Instituto Arraial do Pavulagem, Tainá busca compreender como é feita a transmissão musical dentro do Instituto, tanto durante as oficinas, quanto em outros momentos de aprendizagem. Foi realizada uma extensa pesquisa de campo, além de 26 entrevistas com pessoas vinculadas ao IAPav e criação de narrativas visuais que compõem a tese por meio de fotografias e ilustrações.
“A forma com que o ensino de música é pensado institucionalmente e o que encontrei nas pesquisas e nas leituras começou a me inquietar. Muitas músicas e saberes não estão dentro das instituições. Quando, durante a graduação, eu entrei no Arraial do Pavulagem, conheci outro universo de possibilidades de como aprender música”, conta a autora. Ao participar como brincante (como são chamadas as pessoas que fazem parte das atividades dos arrastões), Tainá Façanha ficou intrigada com o curto espaço de tempo com que todos aprendiam os instrumentos necessários para tocar nos cortejos. Ela afirma sempre ter tido dificuldade em aprender percussão, mas, dentro das oficinas, conseguiu, pela primeira vez, tocar tais instrumentos.
De pequenos cortejos ao Instituto Arraial do Pavulagem
O Arraial nem sempre foi Instituto. O estudo mostra que foi em 1987, na Praça da República, no centro de Belém, que o grupo musical Boi Pavulagem do Teu Coração começou, sem muito recurso ou estrutura, a tocar e realizar pequenos cortejos ao redor da praça, acompanhados pela figura do boi-bumbá. Ao fim do cortejo, era realizado um show ao lado do Teatro Waldemar Henrique, inativo na época e reaberto para os shows do grupo.
O cortejo, até então pequeno, conquistou cada vez mais pessoas e ultrapassou os limites da praça, chegando às ruas. O Boi Pavulagem azulado, antes simples, ganhou uma nova roupagem com os devidos adereços, além de velhos e novos companheiros, como o Boi Malhadinho, do Bairro Guamá, que acompanha a brincadeira desde o início, e o Boi Pavu, criado em 2022 para o vaqueiro mirim do Boi Pavulagem. A institucionalização aconteceu em 2003, por meio de políticas de fomento à cultura e, em 2009, tornou- se ponto de cultura.
As principais atividades do Instituto são as oficinas, os ensaios e os arrastões. As festividades são sazonais e envolvem: o Arrastão Junino, o Arrastão do Círio, o Cordão do Peixe-boi, em Belém e o Cordão do Galo, realizado em Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó. A maior de todas é o Arrastão Junino, que acontece em junho, mas cuja preparação tem início em maio, com 15 dias de oficinas de canto (comum a todos), dança, perna de pau e percussão. Após as oficinas, são realizados mais 15 dias de ensaio, em que os participantes novatos se reúnem com os veteranos e formam o Batalhão da Estrela, que irá, junto com a banda do Arraial do Pavulagem, compor o cortejo.
Todos os encontros são ricos em trocas e convergências de saberes, perceptíveis no processo de aprendizagem dentro e fora das oficinas. A pesquisadora conta que “durante a preparação para os arrastões, muitos mestres estão presentes, como o Mestre Lucas Bragança, mestre de carimbó do grupo Sancari; e o Mestre Catarino, que é o mestre de banjo; o próprio Ronaldo Silva, um dos fundadores do Arraial. O momento com os mestres é de aprendizagem e diálogo com a cultura”.
A pedagogia do encontro na escola a céu aberto
Em seu trabalho, Tainá Façanha fala da importância desse movimento que agrega diversas culturas do mesmo estado e ritmos não-hegemônicos, como por exemplo: o Carimbó, a Marujada de São Benedito, as toadas dos bois, as Folias dos Santos, entre outros. “Os saberes são transmitidos com pedagogias do encontro, permitindo que as pessoas aprendam juntas, na rua; de maneira sistematizada, nas oficinas; como também nas relações interpessoais”, avaliaTainá.
A pesquisa também cita os desafios durante a pandemia de covid-19, que limitou os encontros presenciais e deixou as ruas vazias sem a cor e os sons do cortejo. Foi necessário reinvenção e persistência. O Instituto promoveu oficinas virtuais, campanhas de arrecadação de fundos para auxiliar o combate à pandemia na Ilha do Marajó e outras atividades. Mas a saudade do movimento presencial permaneceu e tornou o retorno dos arrastões, em 2022, um momento histórico e preenchido pela emoção.
A tese destaca a necessidade de valorização da prática decolonial do ensino de música. Seja no dia a dia dos ensaios ou nos arrastões, os encontros são permeados por práticas musicais e culturais que trabalham com demandas reais dos sujeitos, mostrando que o ensino de música pode, e deve, transcender métodos formais que, por muitas vezes, são excludentes, pois nem todos têm acesso às escolas ou aos instrumentos.
“Um dos momentos marcantes foi a entrevista realizada com Ronaldo Silva, que eu considero a síntese do que é aprender música e o que é o Arraial do Pavulagem. Eu perguntei sobre o que era importante no processo de aprendizagem e ele respondeu que o importante não é só tocar ‘certo’, mas se a pessoa pega a baqueta e toca o tambor para mudar o mundo. Eu achei isso muito significativo, porque vemos uma contribuição para a sociedade de valor inestimável nesses 37 anos de história, dessa aproximação com a cultura do nosso estado e do poder transformador que o Arraial tem na vida das pessoas”, declara a pesquisadora-brincante.
Conheça a discografia da banda Arraial do Pavulagem – Você sabia que a banda do Arraial do Pavulagem lançou seu primeiro álbum em 1995? Desde então são nove álbuns com músicas, com sonoridades que vão desde o carimbó ao reggae-boi! Acesse o instagram @arraialdopavulagem e clique no link da bio para ouvir a discografia e obter mais informações!
Sobre a pesquisa: A tese Uma escola a céu aberto: a transmissão de saberes do Instituto Arraial do Pavulagem foi defendida por Tainá Maria Magalhães Façanha, em 2023, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará (PPGARTES/ICA), sob orientação da professora Sonia Maria Moraes Chada. A pesquisa foi financiada pela CAPES.
Beira do Rio edição 170
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