Um retrato contemporâneo do Salgado
Etnografia destaca o impacto da pesca para as famílias locais
Por Thaís Braga Foto Maycon Nunes/Agência Pará
São Caetano de Odivelas, na mesorregião nordeste paraense, foi cenário de um encontro científico-existencial. Na tese O Aprendizado da Vida. Brincadeira, trabalho, gênero e geração em Boa Vista/PA, a cientista social e analista em Gestão Pública, da Defensoria Pública do Estado do Pará, Raida Trindade redescobriu Susi, a criança que nasceu na Vila Camapu, próximo à vila Boa Vista, e visitava o local amiúde na infância, durante as férias escolares. Raida e Susi são a mesma pessoa, mas suas identidades - a da pesquisadora e a da nativa - se entrelaçam no estudo defendido no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCH) da Universidade Federal do Pará. “Meu pai dizia que, quando nasci, parecia a boneca Susi”, diz a autora ao lembrar a origem do apelido de infância.
De maneira geral, a pesquisa etnográfica analisou o modo de vida dos habitantes de Boa Vista na perspectiva das questões de gênero, família e geração. A escolha do lugar justificou-se não apenas por Raida Trindade ter nascido nas proximidades da vila, na microrregião do Salgado. Ao longo dos anos, a lógica inverteu-se e, em vez de Raida/Susi ir a Boa Vista, era Boa Vista que ia até ela. “Desde que minha família se mudou para Belém, nos anos 1960, nossa casa tornou-se um ponto de referência para os odivelenses que, quando precisavam vir à capital, sobretudo para consultas médicas, se hospedavam conosco”, explica.
Entre suas próprias memórias e informações da população local, o trabalho mostra uma Boa Vista habitada por cerca de 100 famílias que organizam a vida socioeconômica em torno da pesca, em especial das espécies pescada e dourada. De maneira secundária, desenvolve-se a captura de crustáceos (principalmente caranguejo) e moluscos (como ostra, mexilhão e turu). A maior e melhor parte dos alimentos, chamados de “peixes graúdos”, é destinada às feiras e aos supermercados de municípios próximos, como Santo Antônio do Tauá e Castanhal, mas também a Belém e a outros estados brasileiros. A troca comercial é feita no recém-inaugurado Mercado de Peixe de Boa Vista. Já os “peixes pequenos”, quando restam, são vendidos e consumidos pelos moradores locais. As transações, no segundo caso, ocorrem nos quintais das pessoas.
Trabalho feminino é qualificado como “mariscagem”
Nos doze meses em que esteve em campo, Raida Trindade observou que boa parte da receita familiar resulta do labor das mulheres que, geralmente, produzem e vendem farinha de mandioca (e seus subprodutos, como tucupi e goma) e comidas caseiras em frente às suas casas, bem como oferecem serviços de costura de roupas, manicure e pedicure. Isso ocorre porque a pesca é sazonal e, no período em que não se pode exercê-la, em decorrência da reprodução das espécies, o dinheiro para o sustento do lar advém dos programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, do governo federal. “O trabalho feminino é preponderante para a composição dos rendimentos familiares. Não é um mero complemento”, avalia.
A atividade pesqueira revela ainda classificações e exclusões na sociedade de Boa Vista. Os homens são pescadores e as mulheres, marisqueiras. Os primeiros lançam-se ao mar em grandes embarcações, por meses, atrás dos “peixes graúdos”. As segundas, além dos cuidados domésticos, pescam os mariscos “na beira”, ou seja, nos manguezais e nas margens do rio Camapu. Para a autora, essa organização social indica que o ofício das mulheres (e das crianças que as ajudam) tem pouco reconhecimento, por mais que seja a pesca “na beira” que garanta a alimentação das famílias de Boa Vista, dado que os “peixes graúdos” mal chegam ao cais e seguem imediatamente para o mercado externo.
As mulheres de Boa Vista são vistas como pescadoras em apenas duas situações: quando se cadastram na Colônia de Pescadores, para garantir o direito à aposentadoria, e quando se autodefinem em relação às demais mulheres: marisqueira é a outra (em tom de acusação). Este segundo sentido, além de reproduzir o privilégio masculino, reforça que a pesca “na beira” é menos importante, bem como questiona a habilidade e a competência da mulher para lidar com tarefas ligadas ao mar e ao rio. “O homem é absoluto, é ou não é pescador. As mulheres utilizam critérios de desclassificação do trabalho umas das outras, mas, para os homens, todas elas são desqualificadas”, analisa Raida Trindade.
Universo da pesca está presente nas brincadeiras
O estudo mostrou que, quando crianças, meninos e meninas de Boa Vista recebem mais ou menos a mesma instrução acerca do universo pesqueiro, ou seja, todos aprendem a manusear e a construir artefatos utilizados na pesca – seja pela observação dos afazeres dos adultos, seja pelas brincadeiras de construir barcos, redes de pesca e armadilhas para capturar camarão, por exemplo. “A diversão infantil é extensão do que ocorre em casa. Desde muito cedo, os pais introduzem seus filhos nas ocupações cotidianas para que não se tornem adultos ‘preguiçosos’”, afirma Trindade. As diferenças de gênero evidenciam-se com o passar do tempo.
Na avaliação da pesquisadora nativa, “o aspecto econômico coloca as pessoas em lugares ideologicamente pré-estabelecidos, ainda que elas lutem para sair desse enquadramento que lhes é imposto”. Isso significa que a expectativa para romper com a hierarquia local é depositada na geração seguinte. Os filhos que desejarem poderão sair de Boa Vista para estudar em Belém (consequentemente, terão que viver com outra família, que não a sua) e/ou ir preferencialmente para a Região Sul do Brasil (para cidades como Curitiba ou Florianópolis) em busca de emprego na indústria e retornar à Vila apenas para passear. Contudo esta opção não vale para todos. “Sempre haverá aquele que ficará retido para cuidar dos pais e reproduzir o padrão de homens pescadores e de mulheres marisqueiras”, afirma.
Segundo Raida Trindade, a expectativa criada pelos jovens que deixam Boa Vista entre seus 19 e 28 anos frequentemente não corresponde à realidade, pois as pessoas vão para “casas de família”, nas quais se tornam “filhos de criação”, entretanto têm um lugar marcado: em geral, cumprem incumbências relacionadas ao lar em troca de moradia e alimentação, com baixo ou nenhum salário. Neste contexto, falta tempo para estudar ou simplesmente a opção é abdicada.
“Essas saídas de Boa Vista para Belém podem se dar por várias vezes, isto é, constantes idas e vindas, circulando por diferentes famílias, assumindo diferentes funções como babás, empregadas domésticas, ajudantes de serviços gerais etc.”, explica. Em alguns casos, a saída para a capital ocorre na infância, quando as crianças têm entre seis e sete anos.
População pôde se enxergar em problemas e diferenças
O espírito pueril ajudou Raida Trindade a percorrer diferentes lugares de Boa Vista, sendo afetada de diferentes maneiras, de acordo com as interações. “Para os mais velhos, fui aquela que permitiu rememorar muitos fatos. Para os jovens, aquela que teve de trabalhar muito para convencê-los a falar. Para as crianças, fui aquela com quem era interessante trocar”, pondera.
Segundo Raida, uma das maiores contribuições da tese recai sobre a própria população de Boa Vista, que passou a reconhecer as diferenças e os problemas provocados pela pesca em larga escala. “No começo, as pessoas não se sentiam à vontade em falar sobre a saída do melhor peixe. Mas, com o tempo, compreenderam que não era a natureza a ‘culpada’ pela falta de alimento, e sim a brutalidade da atividade pesqueira. A ideia de que hoje há menos peixe nos rios, em comparação com o passado, não se sustenta quando as pessoas começam a se questionar”, comenta. A pesquisa revelou de que modo não apenas as pessoas são agredidas pelo capital, mas também a natureza.
Sobre a tese: O Aprendizado da Vida. Brincadeira, trabalho, gênero e geração em Boa Vista/PA foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCH) da Universidade Federal do Pará, por Raida Trindade, em 2022, com orientação da professora Maria Angélica Motta-Maués e coorientação da professora Telma Amaral Gonçalves.
Beira do Rio edição 166
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