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Entrevista: Nós e os outros

Publicado: Sexta, 16 de Fevereiro de 2018, 15h00 | Última atualização em Sexta, 16 de Fevereiro de 2018, 15h43 | Acessos: 7889

Yara Ayllin conta sua experiência como indígena no curso de Medicina

Por Walter Pinto Foto Alexandre de Moraes

Yara Ayllin dos Santos é índia Caripuna, da reserva Uaçá, no Amapá. Filha de um cacique pertencente a uma família de líderes indígenas tradicionais e de uma professora nascida no Pará. Yara é casada, mãe de dois filhos, está no último semestre do curso de Medicina da Universidade Federal do Pará, na qual entrou pelo sistema de reserva de vaga, instituído em 2010. Atualmente, estudam na mesma faculdade nove indígenas, que passam pelas mesmas experiências. Nesta entrevista, ela conta um pouco da sua história, fala da necessidade de voltar sempre à aldeia para continuar sendo reconhecida como índia, revela como os índios veem os médicos, narra um pouco dos desafios e preconceitos enfrentados por ela dentro de um curso de elite e critica a ausência de uma política de permanência na Universidade.

Ensino fundamental e médio

Estudei o ensino fundamental numa escola municipal da aldeia que é bilíngue, onde se fala o português e o patuá. Tínhamos professores indígenas e professores contratados. O sistema era modular e nós estudávamos uma disciplina de cada vez. Mas, às vezes, não havia professores para todas as disciplinas, então um módulo que deveria ser concluído em um ano levava até dois. Quando eu concluí o fundamental, minha mãe, que é paraense, convenceu meu pai a me mandar para Belém, para continuar os estudos, passando a morar com a família dela. Na aldeia, não há o ensino médio, o que é um problema de quase todas as escolas em aldeias. Eu estava com 13 anos quando vim para Belém e fui matriculada na Escola de Ensino Médio Salomão Mufarrej, na Cidade Velha. Depois que concluí o curso, voltei para a aldeia. Aliás, durante as férias, eu sempre voltava, porque se tu não regressas, a etnia deixa de te reconhecer como índio, e não ser reconhecido pesa muito. Sem o reconhecimento, só te resta a autodeclaração. Minha primeira aprovação no Enem foi no curso de Direito, da UFPA, mas nem cheguei a cursar. Queria fazer algo que suprisse a demanda da aldeia na área da saúde, por isso, no ano seguinte, fiz o vestibular para Medicina.

A entrada na UFPA

Quando a UFPA implantou o sistema de reserva de vaga no curso de Medicina, em 2010, eu e minha irmã decidimos tentar o Enem. A reserva foi uma demanda dos povos indígenas do Pará e é diferente do sistema de cota. A gente estava na expectativa de só uma conseguir passar, porque éramos da mesma etnia, mas, felizmente, conseguimos as duas vagas ofertadas. Estamos no sexto ano, concluímos o décimo primeiro semestre. Em janeiro, começamos o último.  Minha irmã está cursando uma disciplina optativa em São Paulo. Pretendo fazer residência no Hospital Barros Barreto, na especialidade de Infectologia. Depois, pretendo prestar concurso para atuar no Distrito Sanitário de Saúde Indígena, no Oiapoque. Mas quero intercalar essa atividade com o trabalho de pesquisa que desenvolvo há três anos, na equipe do professor João Guerreiro, na UFPA. Fazemos atendimento médico ambulatorial em áreas indígenas, um trabalho que gostei muito de realizar e que, para mim, é uma espécie de contrapartida pela formação que estou recebendo da Universidade.

Atendimento na aldeia

Localizada no extremo norte, a reserva fica bem longe da cidade de Macapá. No Oiapoque, não há estrutura, o laboratório não funciona e, quando funciona, é muito caro, então tudo dificulta. Quando um paciente da aldeia tem uma doença mais grave, ele é mandado para Macapá. Mas, muitas vezes, ele prefere morrer na aldeia a ir para lá, pois não quer ficar longe da família. Quando um índio vai à cidade se consultar, esta é a sua última opção. Ele só vai depois de esgotados todos os recursos da medicina indígena. Ele já passou pelo pajé, pela benzedeira, já usou todas as ervas e nada deu certo. Sei disso porque vivi na aldeia.
Medicamento é outro problema. Além da falta de medicamentos na reserva, os índios não gostam de usá-los, preferem as ervas medicinais. Na minha aldeia, há um ambulatório pequeno e simples. O médico vai uma vez ao mês, mas os índios não possuem muita afinidade nem confiam nele. Então, na hora da consulta, eles não contam tudo o que sentem, dificultando o tratamento. Além disso, o médico é cubano e há essa dificuldade de conversar por causa da língua.

Estereótipo e desafios

Quando a gente fala de indígena, as pessoas sempre pensam que o indígena é quem está procurando serviço, nunca a pessoa que vai oferecer um serviço. Então o indígena é visto sob o estereótipo de coitadinho, de incapaz. Quando entrei no curso, os colegas logo me reconheceram como indígena por causa do nome e da fisionomia. Quando eles ficaram sabendo que entrei por meio do sistema de reserva de vaga, eles quiseram, então, me dar a parte mais fácil dos trabalhos em equipe, porque achavam que eu não daria conta. Isso não deixa de ser uma forma de preconceito. Há outro problema: todo indígena, principalmente o que vem da aldeia, quando ingressa na faculdade, é muito retraído, quase não conversa, não faz muita amizade, acaba por se isolar em sala. Isso aconteceu comigo. Só aos poucos, a gente vai se soltando. Eu sabia que o curso de Medicina era elitizado e que teria um pouco de dificuldade. Tinha consciência de que teria que estudar o dobro para chegar ao nível dos colegas, cuja maioria havia estudado em bons colégios particulares de Belém. Eles estavam acostumados à rotina de estudar muito para tirar boas notas. Eu fui adquirindo essa rotina ao longo do semestre, mas consegui e me adaptei bem mais rápido do que eu esperava. No segundo semestre do curso, eu engravidei e tive que trancar o curso. Quando regressei, fui matriculada numa das turmas que começaram a estudar na metade do ano, com mais cotistas e onde há menos concorrência entre alunos. Foi com essa turma com que eu mais me identifiquei. São alunos que, por serem cotistas, sofrem preconceitos. Por isso nos abraçamos mais, somos mais solidários, dividimos os resumos, o material, queremos todos chegar a um mesmo nível. Foi nesta turma que eu mais cresci.

O olhar do outro

A ideia que a sociedade faz do indígena é que ele tem que viver no meio do mato, andar pelado e só comer a comida que plantar, caçar ou pescar. É muito comum alguém dizer que um índio não é mais índio porque usa celular, roupa normal ou porque acessa uma rede social. Quando ouço algo assim, reajo perguntando: “e você, por que não usas mais aquelas roupas compridas, antigas, que os brancos usavam há 517 anos? Ora, o mundo todo evoluiu, por que só o índio tem que ficar parado na história?”. Então eu sempre bato nesta tecla: eu não vou deixar de ser índia, porque uso jeans, salto alto, porque vou ser médica, porque moro na cidade, entende? Ainda há muita gente que acha que só é índio quem mora na aldeia, não fala português, que bate na boca para fazer barulho, tipo índio de filme! São pessoas que gostam de generalizar.

Relação com professores

Logo no início do curso, alguns professores deixaram claro algo assim: “não é porque és índia que vais ser tratada de forma diferente, aqui não há regalias”. Eu nunca reclamei, pelo contrário, sempre quis ser igual a todo mundo. No geral, os professores me tratam como uma acadêmica comum de Medicina. Nunca recebi tratamento diferente. Se tu estás num curso de Medicina, tens que aprender a te virar sozinha, tens que aprender, porque, quando estiveres atendendo a um paciente, não vai haver mais ninguém ao teu lado. Será tu e o paciente.

Política de permanência

As universidades federais estão preocupadas em colocar o indígena dentro delas, mas não estão preocupados com a sua permanência. Não há uma política nesse sentido. Há todo um contexto econômico, a questão da moradia, problemas reais que enfrentamos. Se, por um lado, a UFPA criou um curso para nivelar a aprendizagem de português, por outro, ainda falta algo semelhante na área de Informática, que a gente usa muito no curso. Há índios que desconhecem totalmente o uso do computador, e aí a universidade exige que se faça recadastramento da bolsa do MEC de forma digital. Então o computador torna-se uma barreira. A Associação dos Povos Indígenas Estudantes da UFPA acaba fazendo esse trabalho de iniciar os índios na rotina da Universidade.

Ed.141 - Fevereiro e Março de 2018

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