A regra é mesmo clara?
Conheça a política pública de financiamento do futebol paraense
Por Bruno Roberto Charge Walter Pinto
O paraense tem uma relação forte com os esportes, principalmente com o futebol. Remo e Paysandu, os dois clubes com mais visibilidade do estado, formam uma das maiores rivalidades nacionais e movem milhões de torcedores ao longo do ano. Os dois times participam da terceira divisão do Campeonato Brasileiro, organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que reúne clubes de todo o país. Eles também compõem o campeonato estadual, controlado pela Federação Paraense de Futebol (FPF).
Embora sejam times de grande expressão, a dupla Re-Pa recebe ajuda governamental para se manter ativa. Os recursos públicos são oriundos do banco de economia mista Banpará, patrocinador oficial do campeonato paraense, e da Fundação Paraense de Radiodifusão (Funtelpa/TV Cultura), que detém os direitos de transmissão do campeonato estadual. Quanto a isso, cabe destacar o artigo 217 da Constituição Brasileira, o qual estabelece que a destinação de recursos públicos no esporte deve ser prioritariamente para a modalidade educacional e, em casos específicos, para o esporte de alto rendimento, como o futebol profissional.
Diante desse contexto, o jornalista André Laurent Souza Lopes Sousa investigou se a política pública de financiamento do futebol paraense contribui para o desenvolvimento deste esporte. Para tal, ele realizou análise documental e entrevistas com representantes de times e instituições. “Eu acessei vários documentos: balanços financeiros da FPF, prestação de contas de banco e contratos”, detalha.
Os resultados foram divulgados na dissertação O dinheiro do povo em campo: a política pública de financiamento do futebol profissional masculino do Pará, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDSTU/ NAEA) da Universidade Federal do Pará, com orientação da professora Mirleide Chaar Bahia.
Modelo atual acentua desigualdades entre clubes
O estudo analisou dados coletados nos Portais da Transparência do Governo do Estado do Pará, do Banpará, da FPF e de clubes, de 2005 até 2021. Nos primeiros três anos verificados, o investimento público repassado à FPF foi em torno de R$500 mil. Em 2008, quando os clubes (Remo, Paysandu e Águia de Marabá) solicitaram ajuda governamental para custear questões logísticas, esse valor subiu para cerca de R$2 milhões. No ano seguinte, a TV Cultura adquiriu os direitos de transmissão do campeonato estadual. A partir disso, os repasses aumentaram e, em 2021, atingiram R$9,6 milhões, indicando que o socorro financeiro momentâneo se transformou em política pública, segundo a pesquisa.
André Laurent entrevistou Hilbert Nascimento, presidente da Funtelpa, e Valmir Rodrigues, coordenador de Esportes da TV Cultura, à época da pesquisa. Com base nos dados coletados, o autor entendeu que a TV pública adota critérios de lógica de mercado para tomar decisões, como a busca pela audiência e a redução de gastos com publicidade, já que as ações do governo são exibidas durante as partidas do campeonato. “Será que a preocupação da emissora pública deve ser com a audiência? Concordo com a ideia de que a grade de programação da televisão pública deve ser complementar à das emissoras comerciais. Então, acho que a Funtelpa não deveria compactuar com isso”, declara o jornalista.
Outro ponto levantado pelo estudo é que o modelo de investimento dos recursos públicos potencializa as desigualdades já existentes entre os clubes. Em 2020, a cota de participação paga pela Funtelpa aos clubes do Remo e Paysandu foi de R$745 mil, enquanto os outros oito times receberam R$79 mil, cerca de nove vezes menos. Vale destacar que a dupla Re-Pa é da capital, Belém, enquanto os demais são do interior do estado. “E a justificativa é uma lógica de mercado da televisão pública: Remo e Paysandu recebem mais dinheiro porque têm mais audiência, torcedores, títulos e tradição“, explica o autor. Os recursos do Banpará também seguem a mesma lógica.
Os times do interior têm não somente as menores cotas como também a menor visibilidade. Enquanto todos os jogos de Remo e Paysandu são transmitidos, as outras partidas são invisibilizadas, dificultando a busca de patrocínios pelos clubes interioranos, os quais, assim, não conseguem alcançar um nível de competitividade adequado. Em entrevista ao pesquisador, o presidente do time indígena Gavião Kyikatejê, Zeca Gavião, reclamou da insuficiência de recursos. André Laurent destaca que a comunidade precisou comprar camisas e contribuir com outros custos.
Desenvolvimento do esporte paraense comprometido
A pesquisa também investigou o destino dos recursos públicos. Os presidentes dos clubes informaram que o dinheiro é investido no futebol profissional, especificamente em infraestrutura e pagamento de salário de funcionários, jogadores e integrantes das comissões técnicas. O clube do Remo também destina o recurso para o pagamento de dívidas trabalhistas. “No final das contas, a maior parte vai para o Remo e o Paysandu, que contratam vários jogadores de outros estados. Para onde vai o nosso dinheiro? Para fora”, afirma André Laurent. Conforme o estudo, dos 20 atletas que mais jogaram pelo Remo em 2021, apenas quatro são do Pará.
Ao mesmo tempo em que o futebol profissional é priorizado, as categorias de base e o futebol feminino são deixados para escanteio. No estatuto do Banpará, a única contrapartida para realizar um aporte financeiro é a visibilidade da marca. “Não seria ruim se o governo repassasse os R$8 milhões, mas com a condição de destinar uma porcentagem ao desenvolvimento das categorias de base e do futebol feminino. É muito mais interessante a Funtelpa dar visibilidade para modalidades que pouco aparecem na mídia comercial. Os clubes têm como se vender, o que falta é gestão”, defende o pesquisador.
O jornalista concluiu que a política pública aplicada no financiamento do futebol profissional não desenvolve o esporte paraense, seja pela aplicação desigual dos recursos, seja pelo grande valor destinado ao esporte de alto rendimento. “O estado deveria fazer um investimento no fomento ao esporte educacional e de participação. Há uma intervenção direta governamental no campeonato estadual e na FPF, mas não se vê o mesmo volume de recurso sendo aplicado em esportes amadores ou educacionais”, relata o autor do estudo.
Uma das dificuldades enfrentadas durante a pesquisa foi a falta de transparência. A dissertação destaca que a Funtelpa, a FPF, o Banpará e os clubes não divulgam, de forma clara, todos os dados necessários. “Falei sobre o recurso público total (gasto no período analisado) ser em torno de R$70 milhões para um integrante da FPF, e ele disse que tinha sido mais, sendo que, nos documentos analisados, não consta essa informação. De onde veio esse dinheiro? Como veio?”, conclui André Laurent.
Beira do Rio edição 164
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