Entrevista - Saramago: querido e presente
Pilar del Río vem ao Brasil para eventos do Centenário
Por Rosyane Rodrigues Foto Alexandre de Moraes
No dia 16 de novembro, José Saramago completaria 100 anos. Para a Fundação Saramago, a data é “uma oportunidade para consolidar a presença do escritor na história cultural e literária, em Portugal e no estrangeiro. E também homenagear sua figura como cidadão”. O mais perto que cheguei do escritor foi durante uma visita a Lisboa, quando tive oportunidade de conhecer a sede da fundação.
Na Rua dos Bacalhoeiros, número 10, dois momentos me emocionaram: ler o artigo “Carta para Josefa, minha avó” e ver a agenda pessoal de Saramago assinalando o dia 11 de junho de 1986, quando ele e Pilar del Río se encontraram pela primeira vez. Ao lado da caixa de acrílico, a legenda: "a folha seca que nela se conserva foi guardada pelo próprio escritor". Nesses dois momentos, para mim, leitora e turista, José Saramago deixou de ser o Prêmio Nobel, sendo apenas neto e homem comum.
Nesta entrevista exclusiva para o Jornal Beira do Rio, conversamos com alguém que conheceu o escritor como poucos: Pilar del Río. A jornalista, escritora, tradutora e presidenta do Conselho de Administração da Fundação José Saramago fala sobre a vida compartilhada com José, sobre como enfrentar os momentos de crise e sobre a parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA) em eventos que celebram o centenário do autor no Brasil. “Com tantas atividades, realizadas em tantos lugares, fica claro que José Saramago é um ser do presente e querido em todos os continentes”, afirma Pilar.
Beira do Rio – A história de amor da vida real entre José e Pilar emociona a todos, sempre. Mas as parceiras dos grandes homens geralmente ficam nos bastidores. Você foi julgada por “quebrar essa regra” sendo uma mulher forte, feminista, com uma carreira própria?
Pilar del Río – Acho que todas as mulheres que rompem a tradição patriarcal são “julgadas”, digo, são criticadas por uns e, ao mesmo tempo, servem de estímulo para outras. Acontece isso sempre. Lembre-se do que nos é ensinado, a Bíblia diz assim, que as mulheres – Eva – procedem da costela de Adão, e isso é apresentado como a demonstração de que devemos depender dos homens, seja em casa, no trabalho, na empresa, no governo, seja nas igrejas. Sempre, ao longo da história, os homens são o poder. Às vezes, aparece uma mulher, mas ou respeita o esquema patriarcal ou sofre um impeachment, como a Dilma [Rousseff]. Mulheres que vivam de igual para igual com os homens ainda é uma possibilidade que inquieta a muitos - e proporciona que se critiquem as não submissas. Sim, há quem não goste de mim, pessoas que disseram que sou altiva ou que interferi demais na vida de José Saramago, mas essas pessoas desconhecem o significado de companheirismo. José Saramago conhecia, foi um companheiro escolhido por mim e ele também escolheu a sua companheira. Compartilhar a vida com alguém com grandeza é um privilégio, mas, que fique claro: os grandes convivem com humildade e, juntos, grandes ou nem tanto, constroem e caminham.
Beira do Rio – Ao assistir ao documentário José e Pilar, nós temos acesso ao cotidiano de vocês. Como foi abrir a casa para tantos olhares? E como é, hoje, ter esse registro?
Pilar – Abrir a minha casa nunca foi um problema. A minha casa sempre esteve e está aberta, inclusive agora está aberta à visitação pública, pela manhã, para quem queira conhecer e sentir os lugares onde José Saramago escrevia. A verdade é que os escritores mostram-se nas páginas que escrevem: ao compartilhar inquietações, reflexões, ansiedades, mostram-se em corpo e alma. Depois desse exercício de introspecção, de escrever em solidão, abrir a casa a amigos é só um consolo, um momento de paz. No caso do filme, não ia ser assim, ia ser uma entrevista de uns dias e acabou por ser, de forma natural, um trabalho de anos. O diretor converteu-se numa pessoa mais da casa, registrava os dias como fazem os calendários, mantendo a norma de respeito à nossa intimidade, filmando o cotidiano. Ver agora esse filme é assistir ao privilégio de estar perto do autor que se contou intimamente através dos seus livros. Não se trata de curiosidade mundana ou social, é generosidade e a necessidade de compartilhar que muitos seres humanos têm.
Beira do Rio – A programação do Centenário quer consolidar a presença de Saramago como autor e cidadão. Quais atividades já estão confirmadas nesse sentido, em Portugal e no exterior?
Pilar – Já estamos mais perto da outra margem nessa travessia do Centenário, que quisemos que fosse comemorado desde o aniversário de 99 anos de José Saramago até o dia em que completa 100. A partir daí, decidimos: já está na sua maioridade de idade, já pode se defender sozinho… Brincadeiras à parte, estamos cuidando dos preparativos para este grande dia, o 16 de novembro, e, para isso, foram feitas edições especiais de livros em todos os idiomas, como o álbum Saramago, os seus nomes, trabalho feito dentro da fundação e realizado pelo brasileiro Ricardo Viel e pelo argentino Alejandro García. Além de novas edições, durante o Centenário aconteceram e acontecerão congressos universitários, obras de teatro e de bailado, óperas, conferências, leituras públicas, exposições, edições especiais de revistas e muito mais. Enfim, com tantas atividades, realizadas em tantos lugares, fica claro que José Saramago é um ser do presente e querido em todos os continentes. Várias feiras do livro e festivais literários foram dedicados a Saramago e, numa delas, o lema escolhido foi: “Saramago mola”, algo como “Saramago é legal”. Que alegria ver esse amor da juventude por José Saramago!
Beira do Rio – A UFPA planejou um conjunto de atividades em celebração ao Centenário de José Saramago, em parceria com a fundação. Como você vê esse diálogo próximo com uma universidade na Amazônia brasileira?
Pilar – A Amazônia era um lugar querido por José Saramago, sobre o qual escreveu e com o qual se comprometeu participando de diversas iniciativas. Que a UFPA organize encontros com essa transcendência acadêmica e social é algo que honra a Fundação José Saramago. E reeditar livros do escritor é algo digno dos maiores elogios: agora, aos dois livros já publicados, une-se outro volume de conferências organizado pelo professor Carlos Reis, sem dúvida, um presente aos leitores.
Beira do Rio – A fundação não cuida da obra de Saramago, mas estimula movimentos culturais, debates e encontro de ideias. Como vocês têm feito isso em tempos de crise e recessão?
Pilar – Com imaginação, sempre há maneiras de pensar, dizer, cantar, atuar, gritar, se for preciso, sem a necessidade de grandes investimentos financeiros. O mundo dos negócios está longe da cultura e do ativismo, mas os cidadãos têm a possibilidade de inventar, e isso é o que fazemos na fundação. José Saramago dizia que, no mundo, havia duas superpotências, e uma delas era o poder cívico. A outra, a que menos interessa, era um país que atua como se fosse o centro do mundo, mas esse é só um país diante da possibilidade de expressão dos cidadãos em todas as universidades, associações, culturas, países etc. Há muitas formas de ativar o pensamento e a cultura usando a perseverança e a imaginação.
Beira do Rio – Como leitora, qual a sua obra de Saramago favorita? Qual indicação você daria para os nossos leitores?
Pilar – Cada dia, tenho uma obra preferida, depende do ânimo… Mas se quer que eu dê um título, que seja Ensaio sobre a lucidez, um livro em que os jovens dizem que aquilo que é público, a governação, também é deles, e decidem, com os meios que a democracia nos dá, intervir para que a sociedade seja mais humana.
Beira do Rio – Como você observa a nova geração de escritores de língua portuguesa?
Pilar – Com muito respeito e confiança. Tanto no Brasil como em Portugal, também em Angola e Moçambique, há escritores maravilhosos que ajudam a manter vivo o idioma português. Porque os idiomas precisam de cuidado para que não atrofiem ou desapareçam, e são os escritores os responsáveis por regá-los para que eles, os idiomas, cresçam e permitam que nós nos expressemos com melhores palavras e conceitos. A literatura se fortalece e se reinventa com os escritores jovens e graças a eles.
Beira do Rio edição 164
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