Belém: a capital da Amazônia
Mistura de tradição e modernidade deve surpreender visitantes
Cintia Magno, especial para o Beira do Rio. Foto: Adolfo Lemos
As características culturais, tão próprias da capital paraense, convidam a conhecer uma Belém que foge aos roteiros comuns apresentados a quem visita a capital amazônica pela primeira vez. Seja nas tradições ritualísticas, na farta gastronomia, nos traços do patrimônio histórico, seja nas manifestações culturais populares, não faltam opções para quem quer conhecer Belém além do óbvio.
Ao ampliar o olhar para além dos pontos turísticos, é possível experimentar outros aspectos importantes da memória de Belém que estão empregados no Centro Histórico, em ruas como as avenidas Generalíssimo Deodoro, 16 de Novembro e 13 de Maio, bem como nos distritos de Icoaraci, Outeiro e Mosqueiro. Todos esses espaços são pontos mapeados pelo Projeto de Extensão Roteiros Geo-Turísticos, da Universidade Federal do Pará (UFPA), criado em 12 de janeiro de 2011.
Professora da Faculdade de Geografia (IFCH/ UFPA) e coordenadora do projeto de extensão, Maria Goretti Tavares explica que a iniciativa tem o objetivo de falar do patrimônio na cidade de Belém envolvendo aspectos da geografia e da cultura, aliados às diversas áreas do conhecimento, como História, Turismo, Arquitetura, Museologia, entre outros. Apesar de, naturalmente, englobar pontos turísticos icônicos da capital paraense, como o próprio Ver-o-Peso, os roteiros também convidam a conhecer outros elementos importantes da história da cidade. “Para além desses espaços tradicionais e turísticos, temos roteiros no bairro Campina, um bairro comercial e histórico importante. Percorremos bairros que, normalmente, não são turísticos, mas são importantes porque revelam a história e a memória”, explica a professora.
Hoje, o projeto conta com 12 roteiros consolidados. O percurso que visita espaços do bairro Batista Campos aborda aspectos relacionados à Praça Batista Campos, às maçonarias ali localizadas e ao centenário Cemitério de Nossa Senhora da Soledade, presente no cenário belenense desde 1850 e testemunha de uma época marcada pela ocorrência de grandes epidemias que resultaram na morte de milhares de pessoas e levaram ao esgotamento da capacidade da necrópole em apenas três décadas de funcionamento.
No roteiro do bairro Umarizal, o percurso inicia na Praça Brasil e segue pela avenida Generalíssimo Deodoro, larga avenida que, no passado, já abrigou os trilhos do bonde elétrico que fazia o transporte em Belém e que, até hoje, acolhe instituições de assistência médica centenárias. Já no roteiro ‘Pela Estrada de São José’, a caminhada inicia no Polo Joalheiro, construção que abrigou o antigo Presídio São José, e segue até a Praça da Bandeira.
Icoaraci guarda arquitetura do início do século XX
Para quem tem disposição para ir além da área central da cidade, o patrimônio histórico e cultural presente nos distritos de Icoaraci e Outeiro vale a experiência. Ainda no século XIX, Icoaraci atendia pelo nome de Vila de São João de Pinheiro e servia de refúgio para as famílias mais abastadas que investiam na construção de suntuosas casas de veraneio no local. Em meados de 1906, já no século XX, a vila ganhou um ramal da antiga Estrada de Ferro de Bragança, que funcionava em via dupla, com trilhos vindos da Europa. Até hoje, é possível visitar a antiga Estação Pinheiro, localizada na rua Padre Júlio Maria. Também desse período, é o chalé do livreiro português Eduardo Tavares Cardoso, que, atualmente, abriga a Biblioteca Municipal Avertano Rocha.
Mas, além do que pode ser visto na cidade, a professora Goretti Tavares aponta que o Projeto Roteiros Geo-Turísticos nos convida a conhecer as ‘ausências’ que também ajudam a compreender parte do processo de formação de Belém e de sua população. “Nós também temos uma dimensão decolonial, ou seja, falamos do que está ausente nas representações materiais nos espaços de Belém. Por exemplo, as presenças afrodescendente e indígena são muito importantes na formação da nossa cultura, mas estão pouco representadas em nomes de ruas e estátuas”, considera. “A gente fala da ausência, por exemplo, das mulheres nos nomes de ruas. Então, também existe uma discrepância na questão do gênero”.
Para que essas e outras dimensões da memória de Belém sejam abordadas nos roteiros, Goretti explica que uma equipe de professores consultores colabora com o projeto, o que envolve diversas áreas, como Geografia, História, Arquitetura, Museologia e Turismo. Em 13 anos de existência do projeto de extensão, calcula-se que mais de 10 mil pessoas já tenham participado, sendo que 95% desse total são formados por moradoras(es) de Belém. “Isso revela a importância do roteiro como uma ação de educação patrimonial, pois você só pode defender a cidade e o patrimônio se conhecer a sua história, a sua geografia e a sua cultura”, avalia a professora.
Barracas de rua entregam gastronomia tradicional
Se existe um patrimônio cultural que o belenense faz questão de defender é a farta gastronomia encontrada em diferentes pontos da cidade. E para fugir do comum, uma alternativa é fazer um tour gastronômico nas barraquinhas encontradas nas esquinas de Belém, apreciando as comidas, do modo mais tradicional possível.
Para a historiadora da alimentação e professora da UFPA Sidiana Macêdo, a comida típica paraense criou a identidade da cozinha amazônica composta por elementos indígenas e por diversas trocas com os povos que passaram pelo nosso território. “Essa valorização ganha espaço com os modernistas paraenses que elevaram a alimentação como parte importante da cultura no estado, a exemplo de Jacques Flores, Osvaldo Orico, entre outros”, relaciona. “Mas esse sentimento identitário ganha espaço na sociedade nos anos 80 do século XX, quando essas comidas típicas passaram a ocupar destaque na gastronomia local. Foi a partir daí que a sociedade passou a se identificar com a cozinha amazônica e seus pratos típicos”.
É preciso considerar que as particularidades de hábitos alimentares resguardadas em Belém não são as mesmas encontradas em outros municípios do estado. Ao circular pelas ruas da capital, visitantes e moradores são convidados, pelo olfato, a degustar uma cuia de tacacá ou um prato de maniçoba. Geralmente, o perfume característico do tucupi ou da maniva nos leva às barraquinhas de comidas típicas. “As barraquinhas surgem com as vendedoras ambulantes que, ora vendendo pelas ruas, ora armando barracas em pontos específicos, vendiam bebidas e comidas. Eram as quituteiras”, explica Sidiana.
Além das comidas típicas, Sidiana Macêdo conta que outros alimentos também eram ofertados como, por exemplo, pastéis, mingau, arroz com galinha e salgados fritos, como unha de caranguejo. “Quem vem a Belém não pode deixar de provar o açaí com peixe frito, a caipirinha de taperebá e o suco de bacuri. Os sorvetes regionais, o bolo de macaxeira e o cachorro-quente também estão nesta lista”.
Ervas para um banho de cheiro, de sorte e de saúde
No Complexo do Ver-o-Peso, é possível conhecer outro aspecto da identidade de Belém: a sua relação com as ervas de cheiro. No mercado, cartão-postal da cidade, há um setor em que você vivencia não apenas o perfume das folhagens, mas também, sobretudo, os saberes por trás do uso de cada uma delas.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPA, a pesquisadora Laura Carolina Vieira considera os banhos de cheiro, as garrafadas, as tinturas e outros artefatos comercializados pelas erveiras(os) do setor das ervas na Feira do Ver-o-Peso a materialização do saber tradicional regional. “Em Belém, a prática dos banhos de cheiro e das garrafadas remonta ao período colonial, resultado do conjunto de interações interétnicas dos saberes tradicionais de povos indígenas e negros, assim, com influências da fitoterapia europeia”.
A pesquisadora considera, ainda, que, desde aquela época, os banhos de cheiro são formas populares de medicina, na medida em que suas curas envolvem “etnopercepções holísticas sobre enfermidades”. “Os artigos estão circunscritos não apenas a usos ritualísticos, mas também possuem um uso cotidiano. Ressalva-se o caráter integrativo entre a saúde física e a espiritual”, observa Laura.
Ainda que não se saiba, ao certo, há quanto tempo as ervas e os banhos de cheiro estão presentes na Feira do Ver-o-Peso, Laura destaca que há relatos indicando essa presença desde o governo do intendente Antônio Lemos, cujas intervenções urbanísticas ficaram conhecidas por reformular o cenário de Belém. Também é sabido que esses artigos já eram comercializados na cidade antes disso, pela atuação de vendedores ambulantes nos bairros Cidade Velha, Reduto e Campina. Não à toa, a tradição ligada ao ofício das(os) erveiras(os) foi reconhecida pela Câmara Municipal de Belém.
Festas de aparelhagem – Quando se trata de tradição, a manifestação da cultura popular marcada pelas festas de aparelhagem não pode passar despercebida. Os primeiros registros datam dos anos 1940, quando os equipamentos de som ainda eram chamados de sonoros. O professor da Faculdade de História (IFCH/UFPA) Antônio Maurício Dias da Costa aponta que a existência dessas festas está registrada em jornais, em textos de memorialistas e na própria memória de quem trabalhou nelas. “Esses equipamentos de som que tocam nas festas dançantes de Belém eram conhecidos como sonoros, nos anos entre 1940 e 1970. Apenas no final de 1970, o nome aparelhagem passa a ser usado cotidianamente”.
À época, esses empreendimentos eram fruto de um investimento familiar. O professor Antônio Maurício explica que “os equipamentos eram adquiridos por particulares que organizavam os seus sonoros para festas familiares ou de vizinhança e que, rapidamente, se transferiram para a sonorização de bailes dançantes e eventos profissionais que existiam na cidade”.
Algumas das características contribuíram para que, sem demora, as festas se tornassem um negócio bem estruturado. Entre elas, estão: o foco na tecnologia, a forte identificação dos frequentadores com a aparelhagem e a participação do DJ, que, além de tocar, narra o que acontece na festa, em tempo real. Antônio Maurício acredita que a identificação do público com as aparelhagens foi responsável pela popularização das festas ao longo dos anos. “É como se a aparelhagem fosse um artista, uma estrela do mercado de entretenimento da cidade. A aparelhagem não é apenas um equipamento de reprodução musical, ela é sinônimo de experiência coletiva da efervescência festiva”, afirma.
Para quem deseja conhecer Belém e a sua população por dentro, essas manifestações culturais e artísticas são um bom caminho. “As festas de aparelhagem falam de uma cidade com uma população predominantemente moradora da periferia, de baixo poder econômico, mas que tem uma habilidade e uma capacidade grande de se adaptar diante das inovações tecnológicas e das mudanças do ‘sistema mundo’, como diria Milton Santos”, conclui.
Beira do Rio edição 173
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