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Opinião: Configurações da violência sexual em Altamira

Publicado: Terça, 25 de Outubro de 2016, 17h29 | Última atualização em Quarta, 26 de Outubro de 2016, 17h44 | Acessos: 2007

Configurações da violência sexual em Altamira

Por Assis Oliveira Foto Acervo Pessoal

Grandes obras têm uma relação umbilical com a violência sexual contra crianças e adolescentes. A dinâmica e o perfil populacional que essas obras mobilizam ou desmobilizam propiciam um acirramento das condições de produção da violência sexual, especialmente de exploração sexual de crianças e adolescentes, e vão se reconfigurando ao longo das etapas do empreendimento e das diferentes conformações territoriais, populacionais, da rede de proteção, assim como do mercado do sexo.

Na cidade de Altamira, sudoeste do Pará, a maior obra civil em andamento no Brasil, a Hidrelétrica de Belo Monte, ingressou na etapa de “desmobilização dos recursos humanos” em setembro de 2015, fato que motivou a realização do novo diagnóstico municipal em relação à violência sexual, incluindo a análise comparativa com os diagnósticos anteriores realizados com base em dados obtidos em 2012 e 2013, como parte das atividades do Projeto “PAIR Xingu”, do qual sou o coordenador, com apoio financeiro da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça.

Em termos de condições dos serviços públicos, o diagnóstico, ao empreender análise comparativa entre 2012 e 2015, identificou a melhoria estrutural de algumas instituições, como o CREAS e a Polícia Militar, além da instalação recente do PROPAZ, assim como o aumento de instituições com mecanismos de registro de atendimento e de participação no cumprimento do Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Porém também sinalizou a redução de instituições do Sistema de Justiça com equipe multidisciplinar presente apenas na Vara da Infância e da Juventude, o aumento da rotatividade de profissionais e a baixa qualificação destes para o atendimento de casos de violência sexual, além da precarização, na análise comparativa, das condições de serviços estratégicos, sobretudo do Conselho Tutelar e do CRAS I.

Por outro lado, os dados da rede de proteção apontam para a redução, a partir de 2015, dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes  que ingressaram nos órgãos. Por exemplo, no Conselho Tutelar, passaram de 156 casos, em 2014, para 93, em 2015, numa redução de 40,5%, sendo que o pico de casos ocorreu em 2012, num quantitativo de 177 atendimentos. Já os dados do CREAS e do Fórum de Justiça são ainda mais incisivos na redução e indicam que esta iniciou um ano antes, ainda em 2014.

No entanto a pesquisa teve a preocupação de complementar os dados oficiais com outros obtidos com os informantes estratégicos da sociedade e, particularmente, do mercado do sexo ligado à exploração sexual de crianças e adolescentes. Tais informantes atribuíram a três fatores centrais a mudança da dinâmica de exploração sexual: (1) a reorganização territorial da população diretamente afetada pela hidrelétrica, com o deslocamento de boa parte dela para os reassentamentos urbanos coletivos da cidade de Altamira, e a migração dos pontos de exploração sexual de crianças e adolescentes presentes nesses territórios afetados para outros locais da cidade; (2) a fusão, até certo ponto, entre o mercado de drogas e o mercado do sexo, com o primeiro passando a ter grande influência e, por vezes, administrando as dinâmicas de exploração sexual de crianças e adolescentes, com ênfase em eventos festivos que ocorrem em Altamira e em outros municípios da região do Xingu; (3) a presença marcante das redes sociais digitais como instrumentos de reconfiguração da relação entre clientes e adolescentes envolvidas com exploração sexual, que passaram  a desenvolver contato direto com o aliciador, cuja figura foi transmutada para a própria tecnologia.

Identificou-se, ainda, o papel estratégico do ambiente escolar como lócus do “aliciamento tecnológico”, em que adolescentes inseridas em exploração sexual atuam no convencimento de colegas a se envolverem também, apelando para a ideologia de consumo a fim de cativá-las, sob a perspectiva de que “podem ter mais” ou conseguir alterar seu poder aquisitivo.

Percebeu-se que a condição de vulnerabilidade familiar não, necessariamente, está relacionada com o ingresso das adolescentes na exploração sexual, mas está sempre presente a ideologia do consumo como discurso de convencimento e autocompreensão dos motivos de inserção, não somente para evidenciar a necessidade de aquisição de bens para si ou de aumento do poder de consumo, mas também com base na dimensão simbólica de desejo de ascensão e visibilidade social. Também há uma perversa relação com a dimensão da cidadania, pois, para tais adolescentes, o mercado do sexo funcionaria simbolicamente como local de realização de direitos não satisfeitos em outros espaços sociais (família, escola, comunidade e Estado), ainda que isso acarrete a mercantilização de suas cidadanias, corpos e sexualidade.

A pesquisa reforça o entendimento de que a quantidade de dados oficiais relativos à violência sexual contra crianças e adolescentes, sobretudo à exploração sexual, ainda está aquém da dinâmica real identificada no município, sendo necessário o adensamento das investigações policiais para o desmantelamento do mercado do sexo, mas também o melhor entendimento pela rede de proteção dos sentidos e significados apresentados pelas adolescentes, pois é preciso tanto discutir a desconstrução da ideologia do consumo por meio de atividades de sensibilização no espaço escolar e de mobilização da sociedade civil quanto aportar o acesso a serviços e bens públicos que, efetivamente, assegurem a materialização da cidadania de crianças e adolescentes.

Assis Oliveira é professor de Direitos Humanos da Faculdade de Etnodiversidade da UFPA.

Ed.133 - Outubro e Novembro de 2016

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