Biblioteca do Círio amplia acervo
Plataforma virtual disponibiliza estudos, revistas e cartazes
Por Walter Pinto Fotos Alexandre Moraes
Embora com mais de dois séculos de existência, o Círio de Nazaré só começou a atrair a atenção da Academia em meados da década de 1970, quando o antropólogo Isidoro Alves defendeu a dissertação O carnaval devoto: um estudo sobre a festa de Nazaré, em Belém. Publicado pela Editora Vozes, em 1980, o trabalho pioneiro do antropólogo logo se tornou uma referência sobre o tema.
Quase vinte anos transcorreriam até que outro estudo, de igual envergadura, revisitasse o Círio, mesmo não sendo este o tema central da tese Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico. Defendida em 1995, o estudo do antropólogo Heraldo Maués seguiu o mesmo caminho da dissertação pioneira, tornando-se um clássico da Antropologia amazônica.
Parece incrível que a Academia não tenha assestado suas lentes sobre aquela que é a maior manifestação cultural e religiosa da Amazônia por tão longo tempo. A entrada no novo milênio, porém, corrigiu essa distorção. O acervo acadêmico sobre o Círio cresceu significativamente, principalmente nos últimos anos, por meio de monografias, dissertações e teses.
Em 2014, o Projeto UFPA 2.0 equacionou um problema de fontes e referências bibliográficas ao reunir, num só local, os trabalhos acadêmicos e não acadêmicos sobre o Círio. Assim nasceu a Biblioteca do Círio, um repositório on-line disponível para consulta no endereço http://bibliotecadocirio.org/. Nela, os interessados encontrarão fotografias, vídeos, cartazes, livros, artigos, monografias, dissertações e teses sobre o Círio de Nazaré. Poderão acessar, por exemplo, a imagem mais antiga do Círio, um desenho que reproduz a romaria de 1878, publicado na Revista Puraquê, editada pelo fundador da caricatura no Pará, o alemão Karl Wiegandt.
A imagem de Wiegandt, coletada pelo historiador Vicente Salles, utiliza-se da sátira para reconstruir a crise entre Igreja e Diretoria da festa, que estava proibida de realizar a romaria por determinação do bispo Dom Macedo Costa. Apesar do veto, o povo foi às ruas homenagear a padroeira da cidade.
Visitantes têm acesso a raridades fora de catálogo
Na Biblioteca, o internauta também poderá acessar o último estudo acadêmico sobre o Círio de Nazaré, a tese da jornalista e professora da Faculdade de Comunicação Regina Alves, O manto, a mitra e o microfone: a midiatização do Círio de Nazaré em Belém do Pará, uma das cinco teses disponibilizadas, juntamente com 296 fotografias, 24 vídeos, 15 folhetos, 24 artigos, nove dissertações e cinco monografias.
A proposta da Biblioteca é ser uma plataforma cultural e científica em permanente construção, aberta à contribuição de qualquer pessoa que detenha algum registro do Círio. Para contribuir com o acervo, o interessado deve entrar em contato com os coordenadores da Biblioteca no site da plataforma. Após a análise do material, ele poderá ser disponibilizado para consulta. O professor Flávio Nassar é o coordenador geral; a professora Regina Alves, a coordenadora acadêmica.
O internauta que navegar pela Biblioteca do Círio terá acesso a verdadeiros tesouros, não mais encontrados no mercado editorial. Exemplo disso é a revista em quadrinhos História da santa milagrosa para adultos e crianças, de Raimundo Aguiar de Matos, publicada em 1978. Em 32 páginas, capa em cores e miolo em preto e branco, o artista recria o mito de Plácido, o caboclo que encontrou a imagem de Nossa Senhora de Nazaré em um igarapé próximo ao local onde foi construída a Basílica de Nazaré.
Com um traço que remete aos pintores primitivos, Matos realiza um levantamento histórico do Círio pontuando diferentes momentos, desde a construção da choupana pelos primeiros fiéis até os Círios da década de 1970. Esta foi a primeira HQ sobre o Círio. A segunda seria publicada em 1993 pelo cartunista Luiz Pinto e reeditada em 2014, totalmente colorizada.
Outras preciosidades da Biblioteca são os antigos cartazes, álbuns e programas do Círio, peças até então sem grandes apelos estéticos, mas impregnadas de grandiloquência textual para dar conta da enorme paixão dos romeiros pela imagem da padroeira de Belém. O programa do Círio de 1904 anuncia que “profusas e tronitroantes gyrândolas de foguetes subirão aos ares, como alegres mensageiras, anunciando aos habitantes de nosso bello torrão que vai ter início a festa tradicional pela qual sua alma brilha de satisfação e júbilo, e seu coração transborda de enthusiasmo e carinho”.
Uma romaria de muitas histórias e muitos personagens
O Círio é também uma gigantesca romaria de história e personagens. Um desses personagens teve grande atuação entre 1966 e 1982 no comando da corda – e do próprio Círio – e ainda hoje é lembrado pelas antigas gerações, como observa a jornalista Regina Alves, em sua tese de doutorado. O tenente Orlando Souza esteve à frente de 16 círios e 15 trasladações. Sua entrada no Círio aconteceu quando tinha 50 anos, logo depois de ser admitido na Polícia Civil. Foi designado pelo então secretário de Segurança Pública, atendendo ao pedido de policiamento feito pelo arcebispo Dom Alberto Ramos. A história de Orlando Souza surpreende porque ele era membro da Igreja Presbiteriana e maçom. Acompanhe o relato da autora:
“De paletó e gravata, coadjuvado por dois investigadores da antiga Divisão de Vigilância Geral, chegava de madrugada para retirar grandes pregos que alguns promesseiros afixavam na corda - em tese, serviriam como apoio para que as mãos não escorregassem e eles perdessem o lugar duramente conquistado. Separava homens e mulheres e usava um apito, código acatado por todos: dois silvos e a corda parava; um silvo e a marcha recomeçava. O trabalho funcionou tão bem que dom Alberto fez questão de mantê-lo como senhor da corda mesmo depois da criação da Guarda de Nazaré, em 1974”.
Pós-Graduação
Dissertações
1. O processo de turistificação do espaço em santuários e eventos católicos: uma análise sobre o Círio de Nazaré em Belém-PA. Autora: Débora Rodrigues de Oliveira Serra.
2. Três vestidos fazem pra se apresentar: um estudo sobre o vestir no espetáculo O Auto do Círio. Autor: Francisco Edilberto Barbosa Moreira.
3. Igreja Católica no mundo digital: as tensões entre discurso e prática da igreja na era da internet e as redes de relacionamento do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, como fenômeno de midiatização religiosa. Autora: Thamiris Magalhães de Souza.
4. Círio de Nazaré: da taba marajoara à aldeia global. Autora: Regina Alves.
5. Sociabilidades no Mercado de Peixe do Ver-o-Peso durante o Círio de Nazaré. Autora: Lícia Tatiana Azevedo do Nascimento.
6. O discurso religioso do Círio de Nazaré: uma dívida com o sagrado. Autor: Ildimar Viana Assunção.
7. Negócios sagrados: reciprocidade e mercado no Círio de Nazaré. Autora: Vanda Pantoja.
8. Matemática e cultura amazônica: representações do brinquedo de miriti. Autor: Ivamilton Nonato Lobato dos Santos.
9. Festa e conflito: d. Antônio e a Questão de Nazaré. Autora: Patrícia Carvalho Sanatório Monnerrat.
Teses
1. Círio de Nazaré: a festa da fé como comunhão solidária – uma análise teológica a partir da concepção de Juan Luís Segundo. Autor: Josimar da Silva Azevedo.
2. Belém em festa: a economia lúdica da fé no Círio de Nazaré. Autora: Lucília da Silva Matos.
3. Círio de Nazaré: a festa da fé e suas (re)significações culturais. Autora: Ivone Maria Xavier de Amorim Correa.
4. O manto, a mitra e o microfone: a midiatização do Círio de Nazaré em Belém do Pará. Autora: Regina Alves.
5. Festa à brasileira: significados do festejar no país que “não é sério”. Autora: Rita de Cássia de Mello Peixoto Amaral.
Ed.133 - Outubro e Novembro de 2016
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