Eles, os botos de Mocajuba
Expedição analisa o comportamento de botos no nordeste paraense
Por Glauce Monteiro Foto Acervo da Pesquisa
Um grupo com cerca de doze golfinhos de água doce tem chamado atenção de pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA). Os biólogos, veterinários e ambientalistas se surpreendem com a relação amistosa entre os moradores da cidade de Mocajuba, no nordeste paraense, e os botos-vermelhos (Inia araguaiaensis) que frequentam a orla do município. Apesar de estudar o grupo há mais de dois anos, recentemente os pesquisadores organizaram uma expedição específica para entender melhor o comportamento e, acredite, as “conversas” desses animais míticos da Amazônia.
Durante duas semanas, no mês de setembro de 2016, os integrantes do Grupo de Pesquisa em Biologia e Conservação de Mamíferos Aquáticos da Amazônia (BioMA), em parceria com a UFPA e com a Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), acompanharam os botos-vermelhos e outras espécies que frequentam o local com o uso de boias flutuantes equipadas com hidrofones, soundtraps (aparelho de monitoramento sonoro) e com as Dtags (equipamento eletrônico usado no monitoramento de mamíferos marinhos em seu ambiente natural). O objetivo era saber mais sobre o comportamento e “espiar as conversas” entre os botos de Mocajuba.
“É uma situação atípica, porque normalmente os botos são muito discretos. Esses, ao contrário, são dóceis e estão acostumados a interagir com humanos, o que nos concede uma chance única para pesquisar o comportamento destes animais, especialmente dos botos-vermelhos do rio Tocantins, que são uma espécie recém-descoberta, mas já ameaçada pela ação antrópica”, aponta Gabriel Melo-Santos, líder da expedição e doutorando do Núcleo de Teorias e Pesquisas do Comportamento da UFPA (NTPC).
O pesquisador da UFPA diz que, embora as análises de todo o material coletado durante a expedição estejam ainda no início, a experiência já trouxe algumas descobertas. A primeira surpresa é que o maior período em que um boto-vermelho permaneceu com a Dtag foi por seis minutos. O equipamento, que já foi usado em mais de vinte espécies de cetáceos, em várias partes do mundo, simplesmente era retirado pelos botos da Amazônia.
“Ora as Dtags eram retiradas por outros indivíduos do grupo que usavam a boca para ‘cutucar’ o companheiro, ora o animal que estava com o equipamento simplesmente se aproximava do fundo do rio ou de uma área com pedras e se esfregava ali até que o equipamento se soltasse. Também vimos que eles eram capazes de retirar o equipamento de seu dorso realizando movimentos que lembram os de contorcionistas, o que não aconteceu com nenhuma espécie investigada. Precisamos observar melhor o que esse ‘truque’ dos botos significa. Talvez tenha a ver com a anatomia específica da espécie, com a adaptação diante da interação com o meio ambiente local ou, ainda, esteja relacionado ao intrínseco comportamento dos botos de Mocajuba”, anuncia o biólogo.
Ruídos naturais afugentam botos do canal principal
O comportamento do grupo também trouxe novidades. “Vimos que eles não chegam ao local juntos, mas separados. Também conseguimos gravar sons deles próximo à orla da cidade, à noite, e obtivemos um registro inédito de um filhote de boto em contato social com a mãe. Os sons indicam, ainda, que os ‘cliques’, ou seja, os sons característicos dos botos, usados para navegação e procura de alimentos, são mais rápidos do que os registrados em espécies de golfinhos marinhos, e acreditamos que isso aconteça porque os botos vivem em uma área com mais obstáculos, circulam por rios e igarapés estreitos, enquanto os animais de água salgada passam boa parte do tempo em mar aberto, sem lidar com muitos obstáculos”, pondera Gabriel Melo-Santos.
Outra situação surpreendente foi o registro de um tipo de som de interferência natural que pode afastar os botos da orla de Mocajuba, em certos momentos do dia. “É um som ambiente que acreditamos que seja gerado durante a enchente da maré e que se torna mais forte com o aumento do fluxo do rio.Esses sons são causados por partículas de areia se movimentando no leito do Tocantins. A presença desse som, supomos, afugenta os botos, pois, como eles usam um sistema de localização baseado em sons, no momento em que ocorre esse fenômeno, se estivessem ali, eles estariam cegos e surdos diante do meio ambiente, portanto vulneráveis”, revela o biólogo.
Boto-vermelho e tucuxi frequentam os mesmos lugares
Gabriel Melo-Santos explica que, embora as Dtags não tenham permanecido por muito tempo com os animais, os pesquisadores consideram que tiveram êxito na pesquisa. “Os outros equipamentos utilizados nos trouxeram tantos dados e tantas situações não previstas que a expedição só pode ser considerada um sucesso. Além dos botos-vermelhos, outra espécie de golfinho habita o rio Tocantins, os tucuxis, e monitoramos as duas espécies, por longos períodos, utilizando uma embarcação local. Chegamos a observar, em vários momentos, grupos de boto-vermelho e tucuxis em um mesmo local e/ou muito próximos. Não registramos interação entre os grupos, mas o fato de frequentarem os mesmos lugares é significativo. As soundtraps nos proveram de informações sobre a presença e a ausência dos animais na região, nos possibilitando um primeiro quadro de como os botos utilizam o Rio Tocantins”, assegura o pesquisador.
Além disso, todos os sons gravados durante a expedição trazem informações únicas sobre o comportamento dos botos, já que foi possível os pesquisadores saberem o que ocorria e até mesmo identificar qual dos animais emitia qual vocalização.
“Temos vídeo, áudios e outros dados raros como amostras de muco do espiráculo dos botos, muito difíceis de serem coletadas. Ressaltamos que todas as fases da pesquisa foram realizadas com licença emitida pelos órgãos ambientais. Além disso, conseguimos identificar, individualmente, seis botos, batizados, a maioria, em inglês para que todos na expedição entendessem. Nosso desafio, nos próximos meses e anos, será analisar tudo isso, descobrir e revelar um pouco mais sobre a vida desses animais surpreendentes”, afirma, animado, Gabriel Santos-Melo.
Ed.134 - Dezembro e Janeiro de 2016/2017
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