Entrevista: Uma honraria para a Amazônia
Professora Jane Felipe Beltrão é agraciada com a Medalha Roquette-Pinto
Jimena Felipe Beltrão e Eduardo Rocha, especial para o Beira do Rio Foto Alexandre de Moraes
Em dezembro de 2018, a professora Jane Felipe Beltrão foi agraciada com a Medalha Roquette-Pinto. A concessão da medalha se baseou na trajetória profissional da antropóloga e docente da UFPA há 36 anos, mas professora desde os 17, quando, com autorização provisória, ministrou aulas de História em diversos colégios de Belém. Jane Beltrão atua nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Direito.
“Dentre as várias contribuições na produção do conhecimento antropológico, destacam-se pesquisas interdisciplinares realizadas nas áreas de Antropologia, História e Direito entre povos tradicionais indígenas e não indígenas, com especial inflexão nos direitos diferenciais na área da educação indígena”, disse o professor Antonio Carlos Mota de Lima, da UFPE, a quem coube apresentá-la por ocasião da cerimônia de concessão da medalha, durante a abertura da 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada na Universidade de Brasília.
Em sua apresentação, Mota enfatizou a contribuição da professora para a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da qual foi diretora regional, secretária-geral, membro do conselho científico, vice-presidente no biênio 2015-1016 e na qual, atualmente, integra a Comissão Editorial, a Comissão de Direitos Humanas e o Comitê de Laudos Antropológicos.
Beira do Rio – Qual o significado dessa premiação para você e também para a Amazônia?
Jane Felipe Beltrão - Como primeira mulher da Amazônia a receber a medalha, carrego um sentimento de imensa gratidão pelos meus e minhas mestres, representados na pessoa do professor Roque de Barros Laraia (presente à mesa diretora da solenidade). Entendo a concessão da honraria como reconhecimento por minha trajetória como professora, pesquisadora, antropóloga, mas, sobretudo, como cidadã.
É ainda minha grande honra por me entender cumpridora de minhas funções de cidadã nascida, criada e formada na Região Amazônica e, como pesquisadora, não só por contribuir para a formação de recursos humanos capazes de atuar em diversas áreas com ênfase para os interesses regionais, mas também por colaborar com a defesa de interesses das populações tradicionais da região notadamente indígenas e quilombolas.
Procurei, ao longo de minha trajetória, atuar de forma solidária com aqueles/as que mantêm interlocução comigo e, em face das demandas por direitos, produzo: laudos, vistorias, cursos e livros paradidáticos de uso ampliado e referentes a direitos de coletivos vulnerabilizados e, sobretudo, sobre direitos étnicos e racialmente diferenciados. Ainda que, na academia, essas ações sejam inapropriadamente denominadas de extensão, para mim constituem a razão política da minha atuação profissional.
Beira do Rio – Como você entende a prática da pesquisa na Amazônia? É um desafio muito grande para o antropólogo (a)?
JFB - Como mulher, o tempo me ensinou a viver em voz alta, pois nasci na Amazônia. Antes de mais nada, fui obrigada a lutar para estudar e me fazer profissional. Na política, minha formação compreende a luta ininterrupta contra os colonialismos que se fazem presentes de muitas formas. Portanto sou acadêmica, porque militante; e militante, porque acadêmica. Se um dia havia considerado cursar Direito, desisti. O sonho de “fazer” Direito desapareceu quando a realidade se apresentou exuberante diante dos meus olhos, e vi meus colegas advogados, promotores e juízes buscarem o curso de História como complementação de formação. E logo encontrei o caminho da Antropologia, que me oferecia a oportunidade de lidar com direitos, sem precisar ser operadora do Direito, no sentido estrito da categoria. O tempo me colocou no campo do Direito como profissional da Antropologia.
Entre os estudos de graduação e o dia a dia de professora, frequentei estágio no Museu Paraense Emílio Goeldi, minha segunda casa de formação depois da UFPA, sob a orientação de Eduardo Enéas Galvão. No Goeldi, fui da Arqueologia à Antropologia Social, na tentativa de compreender os meandros da disciplina que me auxiliaria a entender a Amazônia. Essa experiência entre os campos da Antropologia me valeu enormemente quando da criação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), em 2010.
Antropologia e Amazônia, indígenas, populações tradicionais, quilombolas, trabalhadoras da castanha, são muitos os momentos em que a disciplina me permitiu compreender e atuar para transformar realidades. Nunca fácil e sempre desafiante, a natureza, mas, sobretudo, as gentes que se interpõem no fazer antropológico, que vai da sala de aula aos laudos, do campo aos tribunais.
Beira do Rio – Em geral, o cidadão comum e mesmo alguns governantes não dão o merecido reconhecimento e real apoio aos pesquisadores. Por que, ao contrário do que algumas pessoas pensam, produzir conhecimento sobre a Amazônia em particular se mostra imprescindível?
JFB - Para além da Ciência e seus princípios estabelecidos unilateralmente pelo ocidente, produzir conhecimento é também conhecer o que nossos ancestrais e seus dignos representantes sabem e como esse conhecimento nos permite compreender a complexidade do mundo amazônico e contribuir, por que não, para entender outros mundos. Orientei, por exemplo, a primeira pessoa indígena a receber o título de doutor pela Universidade Federal do Pará. Ele se chama Almires Martins Machado, é Guarani/Terena. Hoje, de volta à aldeia Jaquapiru, em Dourados/MS, é docente nos cursos de licenciatura para povos indígenas.
O significado de imprescindível está, ainda, no que nós possamos aprender quando Antropologia e Direito atuam para a formação de advogados indígenas para o estabelecimento de diálogos interculturais com outros sistemas. Não basta acolher os indígenas nas instituições, é preciso pensar o momento vivido como uma “abertura” da academia a outras formas de organização social, promovendo intercâmbio que propicie ao Direito “ouvir outras línguas” e “treinar novas” sensibilidades jurídicas, como informa Geertz (1998).
Beira do Rio – Você é conhecida como uma especialista nos estudos da cultura indígena. Por que é importante estudar os indígenas da região?
JFB - Mais que estudar indígenas, atuar no sentido, de ombro a ombro, construir conhecimento de forma conjunta e coletiva. É buscar legitimidade ao trabalhar com direitos humanos e desenvolver estratégias que permitam aos demais superar a vulnerabilidade em que são colocados os povos indígenas e tradicionais.
Trabalhei com os Aikewara/Suruí, os Parkatejê, os Kyikatêjê, os coletivos indígenas do Arapiuns e do Tapajós, os Tenetehara/Tembé, mas também trabalho com as comunidades quilombolas no Marajó e no Tocantins. De uma forma ampla, o cuidado e a dedicação se expandiram e tornaram-se mais abrangentes comprovando, se é que é necessário, o alcance de uma atuação interdisciplinar que reúne História, Antropologia e Direito, passando, necessariamente, pela Educação e pela Saúde entre populações amazônicas. Hoje, é importante desempenhar ações que conduzam a formação (graduação e pós-graduação) de pessoas indígenas e quilombolas.
Beira do Rio – Qual a situação das comunidades indígenas da Amazônia hoje? Quais são os principais riscos relacionados à sobrevivência delas? JFB- Garantia à integridade do território, ao atendimento em saúde e à educação é fundamental para populações cuja sobrevivência e reprodução estão ancoradas na natureza e na organização do espaço físico, no acesso aos meios de sobrevivência, que envolvem alimentos, mas também itens e condições para o exercício e a manifestação cultural e religiosa. E esse é um cenário que não é exclusivo dos indígenas na Amazônia brasileira. Grupos tradicionais não indígenas ao redor do mundo têm sido tolhidos em sua cultura em razão do desrespeito e de verem subtraídos os meios de reprodução em sua cultura. Hoje, no Pará, temos em torno de 60 povos indígenas, falantes de diversos idiomas, muitos dos quais, sem garantias territoriais.
Beira do Rio – De que forma esse contato permanente seu com a cultura indígena influenciou o seu jeito de viver e de ver o mundo? O que mudou em você?
JFB - A convivência com pessoas etnicamente diferenciadas me permite aperfeiçoar o respeito que deve pautar o cotidiano acadêmico e as relações sociais mais amplas.
Beira do Rio – Em que área de estudo você atua no momento e quais são os seus planos para os próximos anos?
JFB - O futuro para quem tem uma carreira de 36 anos em uma Universidade como a Federal do Pará é agora! Creio que, com as oportunidades “criadas” ou conquistadas, hoje, me sinto confortável reunindo os campos da História e da Antropologia. Ao reuni-los, deliberei trabalhar com Direitos Diferenciados entre povos indígenas e tradicionais. Entre os interlocutores, escolhi as mulheres étnica e racialmente diferenciadas, a quem ouvi por muitos anos e a quem devo escutas, narrativas, compartilhamentos e denúncias acerca da violência e das violações que enfrentam com muita luta na fricção interétnica. Esse é um tema, ao mesmo tempo, representativo da realidade amazônica, mas com conotação universal. Em trabalho recente, escrevi sobre “Indígenas e Quilombolas em situação de violência: como garantir direitos diferenciados?” E assim resumi: “Na Amazônia e, em especial, no Pará, a reivindicação por reconhecimento de direitos é tarefa diuturna entre indígenas e quilombolas. Hoje, como no passado, os direitos continuam desrespeitados, apesar da agência que protagonistas indígenas e/ou quilombolas empreendem. Entre os direitos dificilmente respeitados, encontram-se as situações de violência enfrentadas por mulheres étnica e racialmente discriminadas e sujeitas a violações e violências de gênero. Trazem-se ao público situações nas quais as mulheres “pagam com o corpo” o fato de não se garantir direitos diferenciados”.
Ed.147 - Fevereiro e Março de 2019
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