Protagonistas, mas nem tanto
Discursos do universo feminino nas HQs norte-americanas
Por Adrielly Araújo Fotos Acervo da Pesquisa / Reprodução
Desde a criação do Super-Homem, em 1938, por Jerry Siegel e Joe Shuster, na revista Action Comics, que os super-heróis se tornaram quase sinônimos da produção de Histórias em Quadrinhos (HQs) no Ocidente. As mulheres estão presentes nessas histórias desde o começo, tanto como escritoras e artistas quanto como personagens principais e secundárias. Nas histórias mais famosas, elas são as eternas namoradas (Louis Lane, Dale Arden e Diana Palmer) ou vilãs (Mulher-Gato e Princesa Aura).
No final das décadas de 1930 e no início de 1940, a Segunda Guerra Mundial impulsionou a criação do gênero de superaventura e dos super-heróis, contexto que atingiu homens e mulheres, pois todos precisavam de exemplos de força e patriotismo.
A primeira super-heroína foi a icônica Mulher-Maravilha, do psicólogo William Marston, em 1941, também na Action Comics. A Mulher-Maravilha, criada para ser um modelo para as mulheres da época, é uma semideusa grega, uma princesa e uma guerreira amazona que vai até os Estados Unidos combater as forças do mal, ao lado do coronel Steve Trevor.
No pós-guerra, a condição feminina sofre mudanças tanto na ficção quanto na realidade. Os homens voltam para as cidades e as mulheres são instruídas a retornarem ao lar e assumirem seu papel doméstico. Nesse contexto, as super-heroínas tiveram seus poderes reduzidos, tornaram-se cada vez mais dependentes dos homens e seguiram os padrões de fragilidade, docilidade e submissão.
O sonho da Mulher-Maravilha passou a ser se casar com o seu namorado Steve Trevor. A personagem teve suas botas de luta consideradas agressivas para uma mulher, substituídas por sapatilhas com laços de fita, virando babá, modelo, estrela de cinema e até colunista de jornal para dar conselhos amorosos em algumas histórias.
Esse é o contexto descrito pela psicóloga Carolina Messeder Zahluth em sua dissertação Super-heroínas: uma leitura de gênero a partir do (não) protagonismo feminino nas histórias em quadrinhos, estudo que analisa as mudanças de discursos no universo feminino das HQs norte-americanas de 1940 até a atualidade. A pesquisa foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPS), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH/UFPA), e orientada pela professora Maria Lúcia Chaves Lima.
Revistas analisadas contam história das HQs
Primeiramente, a pesquisadora definiu quais revistas femininas seriam analisadas. “Li e reli várias vezes as revistas, selecionei e printei as cenas que seriam analisadas, depois colhi delas temáticas que tinham a ver com as questões de gênero que eu já havia estudado anteriormente, principalmente considerando o contexto histórico, social e político da época em que foram escritas”, relata Carolina Messeder Zahluth.
As revistas escolhidas foram as das editoras DC Comics e Marvel Comics, por serem as mais consumidas atualmente. As Histórias em Quadrinhos (HQs) escolhidas contextualizaram cinco períodos da história das HQs: Mulher-Maravilha na Era de Ouro, Mulher Invisível na Era de Prata, Tempestade na Era de Bronze, Mulher-Gato na Era Moderna e Capitã Marvel na Era Contemporânea.
Como resultado da análise individual, a psicóloga explica que a história da Mulher-Maravilha, inicialmente, produz um discurso de força e poder femininos que se encaixava com o contexto histórico da época, em que as mulheres haviam conquistado alguns direitos em virtude do movimento sufragista. Entretanto também deixa claro que as mulheres ainda tinham um papel a cumprir: de serem sempre belas, amorosas e de esperar por um amor, um par romântico.
“A Mulher Invisível é criada em um período extremamente conservador dentro da história do Quarteto Fantástico. Ela representa um papel feminino muito desejável ao patriarcado e atualizado até hoje: a dona de casa, bela e recatada. Ela é a esposa, que tem poderes, mas acaba sendo sempre a donzela do grupo”, conta Carolina Zahluth.
Já na HQ de X-Men, em que a Tempestade aparece, Carolina explica que, “embora a história pareça nos trazer um protagonismo negro, ainda é forjada dentro de estereótipos racistas, demonstrados na hipersexualidade da personagem, além de corresponder a um olhar da branquitude, forjado na escravidão”.
“Criada em 1980, a Mulher-Gato surgiu quando o conservadorismo voltava à tona nos Estados Unidos e os movimentos sociais igualitários, que haviam conquistado muitos direitos em 1970, sofrem uma ‘avalanche’ da oposição. A Mulher-Gato foi retratada como uma prostituta em uma revista com violência e com apelo sexual. O discurso produzido é que sim, ela é forte e poderosa, mas é hipersexualizada e violentada por isso”, analisa a autora do estudo.
Por fim, temos a Capitã Marvel. “Lançada em 2012, a revista traz um respiro, pois, nesse momento, os discursos feministas estavam ganhando nova força, inclusive com os movimentos sociais emergindo nas redes sociais. A Capitã não é tão sexualizada e enfrenta os homens. Na história, várias mulheres se ajudam. Infelizmente, existem alguns pontos críticos, como a falta de personagens negros e o discurso feminista raso”, avalia Carolina.
Olhar masculino ainda domina construção das heroínas
No decorrer da pesquisa, a autora entendeu que cada personagem é fruto de seu contexto histórico, político e social. “Em cada período, as HQs acabam trazendo temáticas que produzem e reproduzem nossas experiências como mulheres, para reafirmar ou contestar opressões e estereótipos”, explica Carolina Messeder Zahluth.
Para a autora do estudo, as personagens são construídas, na maioria das vezes, sob o olhar masculino. Mesmo quando os roteiros e os desenhos são de mulheres, o olhar dominante é o masculino (sexualizado ou sensualizado), pois esse olhar internalizado se tornou parte da nossa subjetividade.
“Observamos, então, o não protagonismo das personagens analisadas. Por mais que três delas sejam protagonistas no sentido de serem personagens principais (Mulher- Maravilha, Mulher-Gato e Capitã Marvel), esse protagonizar se mostra problemático e inconstante”, avalia a psicóloga.
Apesar dessa realidade, Carolina Zahluth se mostra esperançosa com as mudanças que estão sendo feitas: novas personagens estão sendo criadas, outras são reformuladas, e as consumidoras ganham voz, mostrando o que querem ler e assistir. “Hoje, principalmente com a internet, já temos vários textos e debates que analisam e criticam o lugar da mulher na cultura, e isso muda o modo de pensar, muda o discurso”, finaliza.
Beira do Rio edição 159
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