Abastecimento com ajuda de São Pedro
Tese analisa Projeto Sanear Amazônia em quatro Resex na região
Por Adrielly Araújo Foto Alexandre de Moraes
Apesar de estar na maior reserva de água doce do planeta, a população da região amazônica enfrenta grande desigualdade no abastecimento de água potável. Contornos peculiares de ocupação do solo; distribuição demográfica irregular, com elevada dispersão nas áreas rurais; e diferenças climáticas são alguns fatores que contribuem para essa desigualdade. O quadro fica mais grave com a degradação ambiental, o desperdício e a ineficiência da gestão dos recursos hídricos.
De acordo com Nircele da Silva Leal Veloso, que apresenta as informações acima em sua tese, a população amazônica já convive com um cenário de crise de abastecimento de água potável. “Em vista disso, algumas políticas públicas vêm sendo implementadas na região, entre elas, o Projeto Sanear Amazônia. A iniciativa é um exemplo da expansão do Programa Um milhão de cisternas para o bioma amazônico, especialmente no atendimento às famílias das Reservas Extrativistas (Resex)”, explica.
O estudo de Nircele Veloso, intitulado Política pública de abastecimento pluvial: água da chuva na Amazônia e por que não?, foi apresentado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDST/NAEA) da Universidade Federal do Pará e orientado pela professora Nírvia Ravena.
O principal objetivo, de acordo com a autora, foi avaliar o modelo de abastecimento pluvial promovido pelo Sanear Amazônia, em quatro Resex amazônicas. Para alcançá-lo, alguns objetivos secundários foram construídos: a caracterização das variáveis socioeconômicas, institucionais e ambientais das famílias alcançadas pelo Sanear Amazônia; a análise do modelo de abastecimento de água ofertado pela política pública quanto à sustentabilidade, no que tange à suficiência, segurança, aceitabilidade e acessibilidade; e a discussão da captação da água da chuva na perspectiva de acesso sustentável à água.
Hábitos, costumes e condições de moradia diversos
“Analisar uma política pública não é um trabalho fácil, principalmente em comunidades que possuem hábitos, costumes e condições de moradia tão diversos. No mesmo estudo, temos: comunidades com sistemas de abastecimento inseridos em um ambiente de forte influência marinha, como Soure; localidades ribeirinhas em grandes rios, como o Amazonas; comunidades cravadas no meio da floresta, com extremas dificuldades de acesso, e ainda povos que vivem próximo aos seringais, em Xapuri, no Acre”, conta Nircele da Silva Leal Veloso.
De acordo com a autora, o caminho metodológico contou com questionários fechados, entrevistas semiestruturadas, observação direta e registro fotográfico das visitas de campo realizadas em quatro Reservas extrativistas amazônicas: Chico Mendes (Acre); Rio Cajari (Amapá); Médio Juruá (Amazonas) e Reserva Marinha de Soure (Pará).
A coleta de dados foi realizada durante as visitas às comunidades das reservas, aos órgãos públicos, às associações e cooperativas. “Durante essas viagens que, em algumas localidades, duraram mais de uma semana, foi possível perceber a dinâmica de apropriação do modelo de abastecimento pelas famílias em cada comunidade”, revela a autora.
Pautados em portarias e normativas do Ministério do Desenvolvimento Social, os modelos de abastecimento por meio da coleta e do tratamento de água da chuva preveem adaptações a algumas especificidades amazônicas. “Independentemente do sistema adotado, autônomo ou coletivo, eles trazem a possibilidade de abastecimento complementar, que, em caso de restrições pluviométricas, típicas da sazonalidade climática amazônica, pode favorecer o atendimento contínuo dos beneficiados, ao satisfazer a demanda per capita de 50 litros/dia (na estação chuvosa) e 20 litros/dia (no verão)”, conta Nircele Veloso.
“Como o sistema foi desenhado para atribuir responsabilidades ao morador, tornando-o um componente fundamental no programa, a forma como a família se apropria da iniciativa e se auto-organiza nas tarefas necessárias para o funcionamento da coleta interfere no sucesso do abastecimento. E essa questão difere em cada comunidade”, afirma a engenheira.
Entendimento local interfere no uso dado ao sistema
De acordo com Nircele da Silva Leal Veloso, o principal entrave para o uso dessa tecnologia, como forma de abastecimento na Amazônia, é o fato de ela não ser aceita como “tecnologia social”, e sim como uma ação do governo. “No Baixo Cajari, a comunidade reconfigurou o sistema e passou a utilizá-lo de maneira diversa da que foi concebida. Segundo eles, a água do rio poderia ser tratada e utilizada para abastecimento comunitário, o que subutilizaria a tecnologia de coleta da chuva. Já as localidades da Reserva Extrativista Marinha de Soure, que encontram dificuldade em lidar com a característica salobra das águas superficiais e subterrâneas, consideram o projeto uma boa alternativa diante da escassez de soluções viáveis para aquele contexto”, explica.
Quanto à análise do parâmetro “segurança sanitária” do projeto, a pesquisadora explica que é possível apontar algumas inconsistências de natureza técnica, ligadas aos procedimentos de descarte de águas não potáveis e à limpeza do telhado, que, se corrigidas, poderiam fornecer água de melhor qualidade aos moradores.
Além disso, a questão econômica é um ponto de vulnerabilidade do programa de abastecimento, pois não há previsão de recursos para a manutenção da estrutura, que seria responsabilidade das associações de moradores. “De forma geral, se bem aceita pela comunidade, com a compreensão integral da dinâmica de funcionamento e o fornecimento do suporte estrutural para manutenções, o programa teria capacidade de atender satisfatoriamente à população mais vulnerável”, avalia Nircele Veloso.
Com as comunidades priorizando as fontes pluviais diante de outros recursos locais e a implantação de medidas de governança que possibilitem o suporte e a manutenção do sistema, Nircele afirma que o Projeto Sanear Amazônia é viável, pois “é inquestionável a vocação natural da região em coletar água da chuva para o abastecimento doméstico”, finaliza.
Beira do Rio edição 162
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