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O mundo social da várzea em resistência

Publicado: Quinta, 01 de Setembro de 2022, 16h06 | Última atualização em Quarta, 14 de Setembro de 2022, 12h29 | Acessos: 817

Pesquisa discute as territorialidades e as identidades na ilha Xingu, em Abaetetuba

imagem sem descrição.

Da redação Foto Acervo da Pesquisa

Desde a década de 1980, a Região Norte do Brasil tem sido palco da construção de grandes empreendimentos de infraestrutura, como a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT) e o Complexo Industrial e Portuário em Barcarena. Tais projetos e construções geram impacto direto na vida da população local, não só trazendo malefícios para a natureza, mas também constituindo um processo de apagamento e invisibilidade da identidade dos povos quilombolas e ribeirinhos que constituem aquele território.

Essas identidades regionais estão diretamente ligadas com os rios, os igarapés, os lagos, as florestas, as ilhas e as várzeas e possuem um modo particular de utilizar tais recursos. A partir deste contexto, a dissertação Territórios em resistência no mundo social da várzea: a cartografia social dos ribeirinhos e quilombolas da ilha Xingu/PA tem o objetivo de compreender como os chamados "grandes empreendimentos" desestruturam e modificam a paisagem e o modo de vida dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia. 

A pesquisa desenvolvida por Nelson Ramos Bastos foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Cidades: Territórios e Identidades (PPGCITI) no Campus Abaetetuba da Universidade Federal do Pará e orientada pela professora Eliana Teles Rodrigues.

O estudo foca na região do Baixo Tocantins, no “mundo social da várzea”, um conceito complexo, mas o autor da pesquisa explica: “um ecossistema plano com porções de terra alagadas e secas, possui uma rica biodiversidade fertilizada pela penetração das marés, através de seus furos e igarapés, onde grupos sociais que se autodenominam ribeirinhos, pescadores, quilombolas, entre outros, realizam suas atividades laborais, sociais, econômicas, educacionais, ambientais, culturais e de resistência, determinando seu território de vida”.

A metodologia empregada no trabalho explorou uma abordagem etnográfica qualitativa, colocando os agentes sociais como sujeitos ativos e dinâmicos da pesquisa, a fim de revelar como vivem ribeirinhos, quilombolas e pescadores da Ilha Xingu, localizada no município de Abaetetuba (PA), região para a qual o pesquisador chama atenção quanto à ameaça da construção de um porto graneleiro pela empresa Cargill Agrícola.

Comunidades descrevem devastação e conflitos em seus territórios 

A pesquisa de campo iniciou em agosto de 2017 na comunidade do Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) Santo Afonso, na Ilha Xingu, e seguiu por mais três comunidades em 2018 e 2019: Comunidade Território Quilombola Nossa Senhora do Bom Remédio, Comunidade Igarapé Vilar e Comunidade Igarapé São José. As comunidades puderam descrever a devastação e os conflitos socioambientais que ocorrem em seus territórios. Por meio do contato direto com os interlocutores, o pesquisador explica ter sido possível compreender a dinâmica territorial na várzea.

Nelson Ramos Bastos também ressalta que o Projeto “Nova Cartografia Social da Amazônia” foi fundamental para a realização de seu estudo, uma vez que promove a visibilidade das comunidades tradicionais afetadas ou ameaçadas por grandes empreendimentos na Amazônia. O projeto incentiva povos tradicionais a produzirem sua “autocartografia” como um instrumento de resistência e defesa de territórios onde há conflitos ocupacionais, organizando essas informações em fascículos, mapas e outros materiais.

Ribeirinhos, pescadores, quilombolas, peconheiros, rabeteiros, calafates, fazedeiras de cuia são algumas denominações para as diversas identidades coletivas que existem no mundo social da várzea. Também são expressões de autoapresentação da população local. “As identidades coletivas são referências simbólicas dos povos e comunidades tradicionais no que tange ao uso comum dos recursos naturais”, explica Nelson Bastos.

O pesquisador investiga o conflito gerado pela presença dos chamados “atores de desenvolvimento" no território social da várzea, ao perceber como as ações que são realizadas fazem parte da geopolítica de recursos territoriais, adentrando locais ocupados por povos tradicionais, principalmente na região da Amazônia brasileira. 

Nelson Bastos discute como o processo de negação e de invisibilização das identidades coletivas começa justamente ao perceber os aspectos conflitantes do que seria desenvolvimento em duas diferentes perspectivas: a do Estado e do capital privado contra a dos atores da região, os quais trabalham em uma escala própria de desenvolvimento.

“As duas escalas de desenvolvimento não coincidem porque há uma negação por parte do Estado e do mercado no que se refere ao território de vida dos povos e comunidades tradicionais. Dessa maneira, passa a existir uma relação de domínio do mais forte sobre o mais vulnerável”, argumenta.

Estudo ambiental não evita impacto dos grandes empreendimentos

Os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e os Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA) preveem os efeitos sociais e ambientais que poderão ser causados com a construção de um grande empreendimento de infraestrutura, inclusive prevê soluções e formas de amenizar tais consequências. No entanto Nelson Bastos argumenta que, na prática, as complicações ainda se fazem presentes na vida da população mais vulnerável, principalmente daqueles que dependem de recursos naturais para o seu sustento.

Diante desses impactos, as identidades coletivas são responsáveis por agrupar e organizar os povos e as comunidades da região para contestar e denunciar os projetos que desestruturam a dinâmica da vida social na várzea. O estudo de Nelson Bastos enumera algumas das mobilizações feitas por movimentos sociais em Abaetetuba, como o Movimento dos Ribeirinhos das Ilhas da Várzea (Moriva), o Movimento dos Ribeirinhos das Paes de Abaetetuba (Moripa) e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Abaetetuba (STTRA), que buscam o diálogo com o Estado e a sociedade sobre os impactos enfrentados na região.

Em sua pesquisa, Nelson Bastos argumenta que o Estado e as estratégias de utilização dos recursos naturais restringem os direitos e a cidadania da população tradicional. Por isso, ao se autoafirmarem em identidades coletivas, eles conseguem confirmar seu pertencimento étnico ao território ocupado por agentes externos. 

O pesquisador discute que é fundamental reconhecer que cada território possui uma dinâmica social própria e, por isso, é importante considerar a cultura, a ancestralidade e os saberes comuns construídos entre as comunidades da várzea. “São elementos básicos para que o Estado possa, dentro dessa perspectiva, promover o desenvolvimento local socialmente justo, ambientalmente equilibrado e economicamente sustentável”.

O autor do trabalho ainda reforça que o Estado deve assegurar e ampliar o direito dos povos e das comunidades tradicionais, implementando políticas públicas elaboradas de acordo com a vocação cultural e ambiental de cada território, além de combater a devastação causada por grandes empreendimentos na Amazônia.

Beira do Rio edição 163

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