Ir direto para menu de acessibilidade.

GTranslate

Portuguese English Spanish

Opções de acessibilidade

Início do conteúdo da página

Resenha

Publicado: Sexta, 10 de Maio de 2024, 12h52 | Última atualização em Segunda, 13 de Maio de 2024, 19h46 | Acessos: 545

Histórias das mulheres na Amazônia

#ParaTodosVerem: Arte mostra a capa do livro “História das Mulheres na Amazônia”, de Cristina Donza Cancela, Natália Cavalcanti, Ana Lídia Nauar e Rosângela Quintela.
#ParaTodosVerem: Arte mostra a capa do livro “História das Mulheres na Amazônia”, de Cristina Donza Cancela, Natália Cavalcanti, Ana Lídia Nauar e Rosângela Quintela.

Por Cristina Donza Cancela | Foto e Arte: Alexandre de Moraes/ CMP Ascom 

Não, não somos o fantasma da mulher do anjo do lar, tão bem retratado por Virginia Woolf. O fantasma do anjo do lar, que anda de soslaio sussurrando em nossas costas, representa a mulher que se omite, que não expressa suas opiniões e segue sempre a vontade dos outros e das convenções sociais. Virginia Woolf teve que ir para cima dessa mulher fantasma do anjo do lar e matá-la, agarrando-a pela garganta. Como ela mesma disse: “Foi legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me mataria. Ela arrancaria o coração da minha escrita.”

As mulheres que escreveram os artigos deste livro também arrancaram, há muito, o fantasma do anjo do lar de suas costas e de sua escrita. Nós temos coração e atitude, não escrevemos estes artigos para agradar. Queremos causar o desconforto, o incômodo, dobrar os cânones da historiografia. Não queremos mais, com nossos trabalhos, apenas mostrar que as mulheres existem e que estavam presentes na História. Isso já não nos basta. Queremos mais. Queremos escancarar que a historiografia construída sem a diversidade dos sujeitos mente! Mente, pois fabrica realidades confortáveis para os homens – brancos e cis – que veem o seu rosto no espelho quando leem sobre a História. Estamos partindo esse espelho com esta coletânea.

Com ela, estamos mostrando que, na História, as mulheres não são exceção, ou um grupo menor, auxiliar ou uma temática à parte a ser estudada. Nós estamos dizendo que estamos em todas as épocas e em todos os acontecimentos, mesmo quando não narram a nossa participação, mesmo quando nos colocavam apenas no papel importante sim, mas limitante, daquelas que ficam na bilheteria dos teatros ou no salão, recepcionando a plateia e mostrando onde fica o lugar marcado no ingresso para um filme em que não éramos as protagonistas. As mulheres deste livro assumiram direção, produção, coreografia, cenário, marcenaria e iluminação da encenação historiográfica. Nós enxergamos nas entrelinhas das fontes, como, há muito, já nos ensinou Maria Odila.

Aos desavisados, queremos dizer que, com este livro, não estamos apenas acrescentando as mulheres à História, dizendo que elas existem e existiram. Nosso batuque é bem mais barulhento. Nós estamos questionando a própria teoria e a metodologia da História, ao mostrar que gênero, raça, etnicidade e sexualidade não são temas à parte, temas menores, ou, mesmo, adereços que se tiram e colocam da historiografia. Não! Os marcadores sociais da diferença são categorias de análise que refinam nosso olhar sobre a experiência dos sujeitos e não nos deixam invisibilizar os sujeitos que estão fora do poder político hegemônico.

A historiadora Margareth Rago, lembrando do início dos estudos sobre a história das mulheres, fala de como incomodava uma certa guetificação das pesquisas e das pesquisadoras. Como se fosse um tema menor, como se ele não fosse mudar em nada a nossa percepção da História. Quando perguntavam para as pesquisadoras: “Com o que você trabalha ou sobre o que é tua tese?” E elas respondiam: “Eu estudo a história das mulheres”, um risinho vinha como resposta. Um riso de canto de boca como se dissessem: “Vai estudar coisa séria: mundo do trabalho, luta operária, industrialização, política colonial, escravidão, urbanização, economia, cabanagem, movimento social". Era como se essas temáticas fossem incompatíveis com a história das mulheres.

Nós mostramos que não! E este livro é prova disso. Nós invadimos, sem pedir permissão, todos os temas e períodos da História e mostramos, volto a insistir, que gênero, classe, sexualidade, raça e etnicidade não são tema, são categoria de análise e devem percorrer qualquer tema. Não é mais possível fazer história sem levar em conta os marcadores sociais da diferença. Desculpem aqueles que ainda não se deram conta de que o mundo é marcado e que não é apenas o rosto masculino que se reflete na historiografia.

Quando a historiografia invisibiliza a participação e experiência feminina, ela nos mata politicamente, ela nos apaga como pessoas de direito e de poder. Por isso livros como este são necessários. Esta obra é resultado de um trabalho coletivo de pesquisadoras mulheres. Mulheres aqui entendidas não apenas do ponto de vista da biologia, mas da autorreferência, da identificação subjetiva, dos prazeres múltiplos e da luta por direitos. Temos também a participação de autores homens que, há muito, já se uniram a nossa perspectiva e são críticos à história patriarcal. Nosso livro é acadêmico e político, por isso as mulheres negras, as indígenas mulheres e as mulheres trans são não apenas temáticas de pesquisa, mas também autoras.

A coletânea é um encontro de gerações: professoras, orientandas, orientandas que hoje são professoras. Na primeira parte da obra, fizemos uma homenagem às pioneiras, àquelas que abriram os caminhos para a escrita de uma história das mulheres na Amazônia. Zélia Amador de Deus, Jane Felipe Beltrão, Maria Angélica Motta-Maués, Luzia Miranda Álvares e Leila Mourão. Há as ausências, por certo, mas sempre podemos fazer um segundo volume.

Com este livro, lançamos nova abordagem sobre a História da Amazônia Colonial, com os trabalhos de Marley Antonia da Silva, Robervânia Silva, Otaviano Vieira, Flávia Mesquita, Marília Imbiriba. O século XIX da Amazônia não será mais o mesmo depois dos artigos de Eliana Ferreira, Daniel Barroso, Cristina Donza Cancela, Andrea Tavares, José Arnaldo Gomes, Ronaldo Trindade, Adriane Silva, Franciane Lacerda, Maria de Nazaré Sarges, Bárbara Rodrigues, Leila Mourão e Luzia Miranda Álvares. O tempo presente vai ser revirado pelos trabalhos de Zélia Amador, Jane Beltrão, Raimunda Conceição Sodré, Ana Célia Guedes, Ana Lídia Nauar, Alana de Oliveira, Rosani Fernandes, Anna Linhares, Ieda Moraes, Rosângela Quintela, Denise Cardoso, Sandra Regina Teixeira, José Luiz Franco, Milton Silva Filho, Natália Cavalcanti, Lyah Corrêa, Leandro Reis Junior, Welington Lobo e Otto Vasconcelos.

É verdade que muitas temáticas ainda precisam avançar na historiografia sobre a Amazônia. Algumas lacunas ainda se apresentam nesta coletânea, como a história das mulheres lésbicas, das mulheres PcD, das mulheres de diversas matrizes religiosas, das meninas, mas, como já foi dito, sempre podemos fazer um segundo volume. Espero que as mulheres que lutaram antes de nós se sintam aqui representadas, que nos afastemos cada vez mais do fantasma da docilidade e da passividade do anjo do lar e escrevamos sempre com liberdade e sem pedir permissão. E quando nos perguntarem sobre o que escrevemos, que sejamos nós a sorrir e a dizer em alto e bom tom: “Nós escrevemos sobre a história das mulheres”!

Serviço – História das Mulheres na Amazônia (Pará, século XVIII aos dias atuais). Cristina Donza Cancela, Natália Cavalcanti, Ana Lídia Nauar, Rosângela Quintela (Org.). Editora Livraria da Física, 2023. Número de páginas: 664.

Beira do Rio edição 170

Fim do conteúdo da página