Quem são essas mulheres?
Pesquisa mostra trajetória de desembargadoras no Pará
Por Gabriela Bastos Ilustração Walter Pinto
O desembargo é o cargo mais alto que um juiz pode alcançar em tribunais estaduais. Os critérios para ingresso são merecimento e antiguidade em sua profissão. No Pará, 60% desse cargo são ocupados por mulheres. Muitas das últimas presidências do Tribunal de Justiça do Pará foram exercidas por mulheres e, em comparação com os demais Tribunais de Justiça do País, poucos se igualam, proporcionalmente, a esse dado.
Com base nessas estatísticas, a pesquisadora Ana Patrícia Ferreira Rameiro defendeu a dissertação O lugar do Gênero nas trajetórias profissionais de mulheres desembargadoras do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará, sob orientação da professora Denise Machado Cardoso.
Segundo a autora, entre as principais motivações para a pesquisa, estava a sua inserção cotidiana no campo da pesquisa, já que trabalha no Tribunal de Justiça como assistente social, e o fato de ter uma história de envolvimento com movimentos feministas, espaços de constantes debates sobre a situação da mulher nas diversas dimensões da vida.
A pesquisadora explica que, na sociedade brasileira, as mulheres estão historicamente em desvantagem na área profissional. “As mulheres não conseguem chegar aos altos cargos. O Pará não é um Estado que se notabilize pela presença de mulheres em postos estratégicos, de tomada de decisões coletivas, seja na política, seja em grandes empresas. Eu também pesquisei sobre a sub-representação feminina, apesar da maior escolaridade das mulheres”, afirma Ana Patrícia.
A metodologia utilizada foi o estudo de trajetória, que usa a oralidade para identificar e analisar questões amplas e coletivas presentes em narrativas individuais. Foram realizadas dez entrevistas, mas somente oito foram autorizadas a constar na versão final da dissertação. “Decidi entrevistar as desembargadoras e conhecê-las. Eu não quis explicar ou justificar o fenômeno nem problematizar o lugar dessas mulheres. Meu objetivo restringiu-se a escutar as trajetórias delas e identificar na história de cada uma como sua vida foi marcada pelo gênero”, explica.
Nos altos cargos não há paridade entre homens e mulheres
Uma das ideias com as quais a dissertação dialoga é a do Teto de Vidro, que descreve um modelo sutil e silencioso de discriminação. Segundo essa ideia, as chances e as oportunidades masculinas no mundo do trabalho são maiores que as femininas. Isso porque, para se manterem no mercado de trabalho e alcançarem altos postos, as mulheres são atravessadas por maiores dificuldades no âmbito doméstico, como jornadas duplas ou triplas e eventos naturais peculiares, como a gravidez.
Segundo a pesquisadora, essa não é uma marca do Pará ou do Brasil, é um problema mundial. Antes, existiam construções teóricas, científicas e religiosas que diminuíam a capacidade feminina. Hoje, mesmo quando elas apresentam maior capacidade e mais anos de estudos, ainda não há paridade entre homens e mulheres. quando se observam os maiores cargos.
Para Ana Patrícia, o perfil das desembargadoras entrevistadas é muito heterogêneo, vai de filha de agricultor a mulheres que nasceram em famílias de elite. Mas todas as histórias foram marcadas pela meritocracia profissional: como iniciaram a carreira entre as décadas de 1960 e 1970, quando ainda não existia concurso público, para conseguir emprego era necessário ir ao TJE após a formatura e pedir uma vaga. “Nos relatos, elas também falam sobre sorte, Deus e coisas sobrenaturais para terem conseguido o cargo”, revela a pesquisadora.
Para Ana Patrícia Rameiro, esse dado dialoga com a ideia de “autossabotagem feminina”, expressão utilizada por pesquisas internacionais que avaliam diferenças em autoavaliações de desempenho profissional de mulheres e homens. Entre as mulheres existe uma dificuldade em reconhecer e declarar suas capacidades e competências, mesmo que elas sejam elevadas e incomuns. Todas as desembargadoras entrevistadas na pesquisa foram posteriormente aprovadas em concursos públicos do TJE, efetivando suas carreiras na instituição.
Segundo a antropóloga, chamou atenção o fato de desembargadoras terem dificuldades em relatar os preconceitos de gênero sofridos durante suas trajetórias. “Não há, entre elas, indicações diretas de terem sofrido discriminações pelo gênero, mas, transversalmente, muitas histórias discriminatórias foram contadas em tom anedótico, como terem suas capacidades questionadas somente por serem muito jovens, no início da carreira”, conta Patrícia Rameiro.
Organização e sensibilidade são tidas como diferenciais
Durante as entrevistas, Ana Patrícia observou que o gênero feminino foi pensado como componente qualificador do trabalho das desembargadoras. Características como organização, múltiplas habilidades, cuidado e sensibilidade foram apontadas como diferenciadoras do desempenho feminino nessa função, a ponto de promover mudanças estruturais no Tribunal de Justiça do Estado.
Tecnicamente, porém, todas as entrevistadas afirmaram que não havia nenhum tipo de diferença no exercício do trabalho entre os gêneros. Por fim, a pesquisadora ainda percebeu um recorte racial definido, uma vez que todas as desembargadoras declaram-se brancas.
Ana Patrícia evitou o tom de crítica às desembargadoras. “Na dissertação, eu quis ter muito cuidado e respeito pelos sujeitos da pesquisa. Meu objetivo foi mostrar quem são essas mulheres, mas não no sentido do julgamento, da crítica pela crítica. Eu tive respeito por elas serem quem são e quis debater esses dados”, esclarece. A pesquisadora acredita que o seu trabalho abriu um campo bastante fértil para novas pesquisas.
A explicação oficial acerca da grande representação feminina no desembargo paraense, reproduzida inclusive pelas entrevistadas, é de que, nas décadas de 1960 e 1970, a magistratura seria mal paga e desprestigiada, o que promoveu o desinteresse dos homens por esses cargos.
Para a autora, essa versão carece de detalhes históricos e tende à depreciação feminina, deixando muitas lacunas explicativas para o fenômeno. Para Ana Patrícia, o judiciário paraense tem muitos traços progressistas que convivem com orientações gerais mais conservadoras e hierarquizadas, tornando-se um campo de investigação científica bastante convidativo.
“No Tribunal, existe uma história de que as mulheres são escolhidas somente pelo critério de antiguidade, nunca por merecimento. Isso deprecia quem essas mulheres são. Acredito que não seja isso, uma vez que poucos Estados chegam próximos ao Pará no que diz respeito ao número de mulheres no desembargo. Nesta pesquisa, eu quis trazer à tona esses dados e essas mulheres, que precisam ser conhecidos”, finaliza.
Ed.141 - Fevereiro e Março de 2018
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