Entrevista: “Educação não é mercado”
Para Baitello, apenas o ensino público e gratuito transformará a sociedade
Por Thais Braga Foto Alexandre de Moraes
“A comunicação, tão desenvolvida tecnologicamente, distanciou as pessoas em vez de aproximá-las. Porque, afinal, tornou-se uma telecomunicação. Encontram-se, cada vez menos, as pessoas. Há menos olhos nos olhos”, afirma o doutor em Comunicação, professor Norval Baitello Junior, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que esteve, em agosto de 2017, em Belém para participar de atividades na Faculdade de Comunicação (Facom) e no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM). Conhecido pelo livro A maçã, a serpente e o holograma (Ed.Paulus, 2010), no qual apresenta uma teoria da mídia, Baitello tece importante interlocução com a obra do pensador Vilém Flusser, além de contribuir com estudos na área de semiótica. Com o Jornal Beira do Rio, refletiu sobre o tempo e sobre a ecologia da comunicação, bem como defendeu o ensino público gratuito.
Conceitos irmãos
Comunicação e tempo são conceitos irmãos. A comunicação pressupõe o tempo e, da mesma forma, cria o tempo, uma vez que toda comunicação visa à sincronização social. Se você está aqui, nesta hora, e eu não estou, não haverá comunicação. Para romper essa condição espacial e responder ao nível de complexidade das sociedades modernas, a comunicação desenvolveu ferramentas de sincronização. O tempo é, portanto, matéria-prima da comunicação. O tempo social é um produto da comunicação. As narrativas são parte importante na construção do tempo, desde as narrativas orais até as narrativas registradas em suportes digitais e/ou eletrônico–escritas, criptográficas, televisivas.
Vilém Flusser
Flusser é um pensador brasileiro. A parte mais importante da sua produção intelectual foi desenvolvida no Brasil. Vejo-o como um profeta das novidades que aconteceram depois de sua morte, há 26 anos. Recentemente, Flusser vem sendo lido no mundo todo. Nós conseguimos levar para São Paulo, em parceria com a Universidade das Artes de Berlim, os arquivos digitalizados com a obra que o autor reuniu a vida toda, por meio do Projeto de Pesquisa Constituição do Arquivo_Vilém_Flusser_São_Paulo. Até então, os brasileiros que quisessem pesquisar Flusser precisavam ir para a Alemanha.
Comunicação
As ciências da Comunicação são um jovem saber em expansão acelerada tanto no aspecto teórico-metodológico quanto na área mercadológica, isto é, a comunicação como um negócio. Flusser não é o único, evidentemente. Há outros autores importantes escrevendo sobre a Comunicação – na área da Medicina, da Psicologia, da Biologia, entre outras. Os primeiros escritos de Flusser abordaram uma arqueologia da Comunicação. Por exemplo, o autor tem escritos sobre a peleologia, ou seja, a ciência do Pelé. Por isso os textos de Flusser são, em certa medida, divertidos.
Ecologia da Comunicação
Quando falamos de ecologia, falamos de ambiente. Não necessariamente um ambiente natural, que envolve a biosfera, e sim, um ambiente social. Na Comunicação, dependendo das condições, o ambiente sofre impactos negativos ou positivos. Precisamos, cada vez mais, adotar posturas ecológicas. Saber, por exemplo, quais os benefícios e os danos que o uso de um aparelho celular pode causar numa criança, ou quais os benefícios e os danos que essa onda de youtubers pode causar nos adolescentes. Essa ciência que calcula ou que tenta prever os possíveis impactos em determinado ambiente é uma ciência que está para ser feita.
Alteridade
A comunicação, tão desenvolvida tecnologicamente, distanciou as pessoas em vez de aproximá-las, porque, afinal, tornou-se uma telecomunicação. Encontram-se, cada vez menos, as pessoas. Há menos olhos nos olhos. É muito mais fácil e cômodo, hoje em dia, enviar um whatsapp. Esse distanciamento criou uma cultura do isolamento. Isso representa o grande risco de a comunicação não contribuir para a alteridade. O recente fenômeno do ódio nas redes sociais evidencia uma dificuldade em lidar com a diferença. Cada vez mais, as pessoas querem “mais do mesmo”, em vez de buscar enriquecimento com as dessemelhanças. Até na natureza, isso é péssimo, porque não contribui para a biodiversidade. Criados pela comunicação, os ambientes sociais também necessitam fornecer condições para que o um seja capaz de lidar com o outro. Quando isso não ocorre, as pessoas simplesmente desistem, eliminam o outro. A comunicação é fundamental para gerar diversidade. Quando há incomunicação, é preciso entender os porquês; impor limites, acordos e negociações para reestabelecer a convivência.
Amazônia
A Ecologia da Comunicação poderia ajudar os estudos desenvolvidos na Amazônia, sobretudo em comunidades mais afastadas, analisando impactos dos meios digitais nesses ambientes. Porém já há estudos que utilizam a ecologia da comunicação, só não empregam o mesmo nome. A única coisa que não se pode perder de vista é a noção de cenário. Nas disciplinas da Ecologia, são feitos cenários para 2050: o que acontecerá, no futuro, se continuarmos a utilizar o petróleo do jeito que utilizamos hoje. Isso, nós da comunicação, precisamos aprender com eles e desenvolver uma genealogia e uma futurologia.
Flusser e Warburg
Nesse livro, publicado pela primeira vez em 2010, trato um pouco da obra de Vilém Flusser, no entanto falo, também, sobre um pensador alemão que existiu no começo do século XX e foi totalmente esquecido: Aby Warburg. Ele foi um pensador da imagem, foi a pessoa que melhor entendeu a questão da visualidade e suas transformações ao longo da história da humanidade. Warburg é o inspirador da teoria sobre o impacto, segundo a qual toda imagem gera um grande impacto, uma vez que somos animais que têm o sentido da visão como sentido de alerta. Tudo o que vemos nos chama atenção. A explosão da visualidade no mundo contemporâneo, de forma que não conseguimos estar em um lugar sequer em que a imagem não chegue até nós, causa impacto nesta e nas futuras gerações. Aby Warburg ensina-nos a lidar com os ambientes que as imagens criaram ao longo do tempo. Chamo de imagem tudo o que é visual, inclusive a escrita. Se vamos perder a alfabetização ou se vamos perder a capacidade de ler, por exemplo, são aspectos com os quais precisamos lidar.
Na Europa, isso já acontece. Na Alemanha, há pessoas que concluíram sua escolaridade e não cultivam o hábito de ler. Só leem o jornal diário, normalmente com informações superficiais. O Bild é um jornal alemão que possui tiragem diária de sete milhões de exemplares e suas matérias são de quatro linhas – algo semelhante a um tuíte – e muitas imagens. Quando a matéria se apresenta com dez linhas, as pessoas só leem até a quarta. Isso vem sendo chamado de neoanalfabetismo. Entretanto esse jornal tem mercado – e o mercado é que possibilita sua existência. Precisamos saber o que o mercado nos oferece e entender se realmente queremos aquilo ou precisamos do que nos é ofertado. O sistema capitalista está aí não por nossa vontade. Quando fizermos valer a nossa vontade, vamos mudá-lo ou aperfeiçoá-lo para algo que nos leve mais em conta, ou transformá-lo em alguma outra coisa que seja mais benéfica para a humanidade. Do jeito como se encontra, o mercado está levando à destruição do planeta, não só à destruição física, mas também à destruição cultural, espiritual – sobretudo das novas gerações.
Crise nas universidades
Venho de uma universidade confessional, porém, no começo da minha carreira, trabalhei no ensino público superior, no qual fui cassado por ter militância política. Sou um defensor ferrenho do ensino público e gratuito, porque somente esta forma de ensino – democrática e de livre acesso a todos – pode transformar a sociedade. Educação não é mercado, não é negócio. Educação é função do Estado. Há, hoje, grandes indústrias universitárias a preços acessíveis, porém me pergunto se há qualificação de verdade – que integre ensino, pesquisa e extensão – ou apenas formação para o mercado. Queremos indivíduos preparados para a vida, para construir um planeta melhor, que se entendam melhor e sejam mais felizes.
Ed.142 - Abril e Maio de 2018
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