Das filhas da chiquita ao direito de ser
Pesquisa faz análise da trajetória do Movimento LGBT no Pará
Por Renan Monteiro Foto Ali Farid - Freeimages
Na noite do segundo sábado de outubro, véspera do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, ocorre a Transladação, um dos eventos mais tradicionais que antecedem a grande procissão. A Transladação faz o percurso do Colégio Gentil até a Catedral da Sé, no bairro Cidade Velha. Após a passagem dos romeiros, acontece, no Bar do Parque, na Praça da República, a Festa da Chiquita.
Tombada, desde 2004, como Patrimônio Cultural Brasileiro e parte do Círio de Nazaré pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural (IPHAN) e também reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (Unesco), a Festa da Chiquita teve início na década de 1970, marcada pela irreverência. Para os estudiosos, sua principal característica é ser reconhecida como o embrião do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (LGBT) em Belém.
Em 2016, foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS/ICSA/UFPA) a dissertação Para além das plumas e paetês: a atuação do Movimento LGBT de Belém-PA no enfrentamento à LGBTfobia. Esta pesquisa mostrou como a Festa da Chiquita criou a base para o ativismo em prol das causas LGBTs.
Elton Santa Brígida do Rozário teve como desafio analisar o processo histórico dos movimentos de defesa da livre orientação sexual e de gênero, procurando analisar também ações governamentais, como a implementação de políticas públicas de combate à LGBTfobia no Brasil e em Belém, e apontar os avanços, as conquistas e os desafios na busca por direitos. O estudo foi orientado pela professora Sandra Helena Ribeiro Cruz.
O procedimento metodológico dividiu-se em pesquisa documental e de campo. Ocorreu o mapeamento dos movimentos LGBT do Pará e a participação nas atividades como encontros, seminários e reuniões. Alguns grupos mapeados foram o Grupo de Homossexuais do Pará (GHP), o Grupo de Resistência de Travestis e Transexuais da Amazônia (GRETTA), o Grupo Pela Livre Orientação Sexual (APOLO) e Orquídeas.
Primeira década do século XXI foi de conquistas
A pesquisa observou como as lutas sociais LGBT, em âmbito nacional, e a implementação de políticas públicas estão relacionadas com o processo de redemocratização brasileira. Nesse momento histórico (pós-ditadura), os movimentos tiveram o fortalecimento das conferências e dos conselhos para a construção de pautas em comum e obtiveram maior interlocução com o governo, nas esfera municipal, estadual e federal.
No movimento LGBT do Pará, houve dois momentos de grande relevância em termos de organização e de ressignificação de suas identidades políticas no final do século XX: a manifestação cultural, política e social Festa da Chiquita, em período anterior a 1988, e a realização do Congresso da Cidade (1997-2004), projeto da gestão do ex-prefeito Edmilson Rodrigues, o qual promovia o diálogo com a população belenense, incluindo os movimentos sociais.
“A partir da primeira década do século XXI, grandes conquistas foram alcançadas pelos movimentos LGBT, em âmbito nacional e local. Houve ações, programas e projetos governamentais de combate à LGBTfobia, no entanto a década de 2010 também acumula retrocessos históricos’’, avalia Elton Santa Brígida do Rozário.
Brasil sem Homofobia – Uma grande conquista foi o plano de 2004 a 2007, da Secretaria Especial em Direitos Humanos, que, por meio do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), criou o Programa Brasil sem Homofobia, propondo uma articulação entre as áreas de saúde, educação, segurança, justiça e cultura. Todavia a pesquisa indica que o fortalecimento do Programa dá-se quase somente entre as instituições não governamentais e os movimentos sociais.
No Pará, em 2008, houve um avanço com a criação do Conselho da Diversidade Sexual do Estado do Pará (CEDS). O Conselho é formado por 12 membros titulares, com representantes do poder público e do movimento LGBT. Elton observa que, “na lógica da construção das políticas públicas LGBT na sociedade paraense, o CEDS foi um avanço histórico, mas, a permanência e o amadurecimento dele são um desafio para o movimento”.
De acordo com a pesquisa, as conferências LGBT realizadas de 2008 a 2016 e as Paradas do Orgulho na cidade tornaram-se referências para a construção de políticas públicas de enfrentamento à discriminação e estratégias de organização do movimento no Pará. “A partir das conferências, o movimento construiu mecanismos de crítica aos Poderes Executivo e Legislativo e ficou unificado. Já as paradas são um símbolo central da histórica luta do movimento LGBT e da manifestação identitária”, afirma Elton do Rozário.
A legislação em prol de pessoas LGBT no Pará e no Brasil é composta por políticas estratégicas que podem ser modificadas conforme as mudanças dos governos. Neste sentido, o pesquisador faz um alerta: “não existe nenhuma lei que garanta o enfrentamento à LGBTfobia, assim como um marco legal que defina a criminalização dos violadores dos sujeitos LGBT”. Em 2015, houve o arquivamento do Projeto de Lei 122/2006, cujo objetivo é criminalizar a violência (física ou psíquica) por orientação sexual e identidade de gênero.
Padrão normativo não permite divergência
Para Elton do Rozário, a sexualidade humana e a concepção binária de gênero (masculino e feminino) refletem uma construção social e histórica, tendo como referência as normas de relações heterossexuais. Instituições sociais, como família, igreja, escola e trabalho, normalizam posições que as pessoas podem ou não ocupar, surgindo uma espécie de cartilha normativa, com deveres e “bons costumes” cercados por dogmas intolerantes com aqueles que divergem desses padrões.
Lyah Santos Corrêa é uma mulher trans de 36 anos. Para ela, falar de LGBTfobia é uma questão muito complexa, pois existem as especificidades e os estigmas para cada indivíduo. “No meu caso, por ser uma mulher trans, a questão se localiza no gênero e não meramente na orientação sexual. Posso dizer que essa relação com o meio social foi muito perversa, tanto que passei a minha infância e adolescência ‘debaixo da mesa’. A minha transição de gênero começou na vida adulta, quando eu estava na universidade e me aproximei de grupos LGBTI+”, revela a psicóloga.
Em 2016, foi assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff o Decreto nº 8.727, que permite o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais em toda a administração pública federal. Hoje, uma das principais pautas do movimento das pessoas Trans é desburocratizar o registro do nome civil. “Percebemos que nem o nome social está dando conta. Nós queremos os nossos nomes em documentos como a própria carteira de identidade, passaportes e título de eleitor, o que significa o reconhecimento de nossas existências enquanto pessoas cidadãs”, afirma Lyah.
Formada em Psicologia pela UFPA, Lyah Corrêa participou do Orquídeas (2007-2009), um dos primeiros movimentos em defesa da diversidade sexual dentro da Universidade. Atualmente, a psicóloga não participa assiduamente de nenhum coletivo, mas reitera a importância da participação, principalmente para os/as mais novos(as).
Elton do Rozário ressalta o protagonismo LGBT na conquista de direitos destacando a relação de diálogo e pressão dos movimentos com o Estado: “Os movimentos estão nas ruas, nas paradas e nas campanhas educativas na busca por uma sociedade mais justa. As atuais políticas públicas e sociais não foram alcançadas por iniciativas estatais, mas por inúmeras lutas”.
Ed.142 - Abril e Maio de 2018
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Dissertação Para além das plumas e paetês: a atuação do Movimento LGBT de Belém-PA no enfrentamento à LGBTfobia
Autor: Elton Santa Brígida do Rozário
Orientadora: Sandra Helena Ribeiro Cruz
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS/ICSA/UFPA)
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