Mulheres e Meninas na Ciência
De banho de cheiro à feitiçaria: as estratégias mágico-religiosas de mulheres negras e indígenas na Santa Inquisição

Por Vinicius Gonçalves Foto Alexandre de Moraes
“Tem pataqueira, tem patchouli, o famoso bogarim, baunilha, cheirosa, a famosa priprioca, banzeiro de pororoca…”. Assim como na cultura e tradição paraenses, a letra de Banzeiro, de Dona Onete, fala sobre o costume que passa de geração em geração, do famoso “banho de cheiro”. No entanto imagina só se todas as erveiras do Ver-o-Peso fossem presas e condenadas por estarem exercendo seu trabalho, com alegações de se tratar de “bruxaria” e “feitiço”. Em artigo intitulado “Joana Maria: A feiticeira negra denunciada ao Santo Ofício da Inquisição no Grão Pará (1763-1769)”, a pesquisadora Juliane Souza conta a história de Joana Maria, uma escravizada negra que foi denunciada à Santa Inquisição pelo seu “senhor”, que a acusou de práticas de “feitiçaria”.
Joana foi levada a confessar para a Santa Inquisição o uso de “feitiços”, ervas e raízes, com o principal propósito de “amansar” seus senhores, a fim de “suavizar o coração” e amenizar os castigos sofridos. O artigo conta, ainda, a tentativa de um “feitiço” de Joana sobre uma mulher indígena que trabalhava com seu “senhor”: Filipa, para a qual Joana lhe fazia os “feitiços” com o intuito de conseguir uma aproximação com a indígena, fazendo com que, assim, o seu “senhor”, Gonçalo José, fosse mais brando nos castigos utilizados com a escravizada.
“Dentro do meu relatório, eu trabalhei muito em cima da trajetória da Joana Maria. Ela faz uma magia contra uma indígena do mesmo engenho em que ela era escravizada. Ela fez isso porque queria a afetividade dos senhores, para que pudesse fugir dos castigos que ela sofria cotidianamente no tronco”, conta a pesquisadora sobre o recorte de sua pesquisa.
O artigo surgiu de um trabalho anterior de que Juliane participou, em que foram pesquisados trabalhos de amor dentro de um terreiro de mina do bairro Guamá, em Belém. A ideia da pesquisa veio com a prática de uma disciplina na faculdade.
Redes de sociabilidades com um único propósito: sobrevivência
A pesquisa de Juliane consistiu no destrinchamento de documentos sobre o processo que foi movido contra Joana Maria, buscando entender parte de sua vida e da sociedade e a cultura material em que estava envolvida. Para o estudo, foi utilizada a metodologia da micro-história, com enfoque na historiografia da Inquisição no Estado do Grão Pará, para compreender as experiências das mulheres racializadas que habitavam o espaço colonial e eram rotuladas pela sociedade como feiticeiras. A pesquisadora analisou os documentos registrados nas denúncias inquisitoriais do Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão Pará (1763 - 1769).
O trabalho, que se insere na temática de história inquisitorial, tratou de visibilizar mulheres negras que estavam localizadas em um mundo permeado de perigos, fazendo com que se sucedesse à procura de magias de proteção e cura. No início, Juliane fez um recorte somente das mulheres negras que faziam sua própria rede de apoio com relação aos castigos promovidos por “seus senhores”. “Eu queria entender como era a relação de sociabilidade dentro dos grupos sociais, femininos e negros, como elas construíam essas práticas mágico-religiosas dentro de uma teia de relacionamentos que elas criavam para poder se proteger”.
Como resultado, a pesquisadora constatou que mulheres negras e indígenas faziam feitiços na tentativa de amenizar seus castigos e, assim, acabavam também construindo relações de sociabilidade multiétnicas com um propósito comum. ”Percebi que as mulheres negras estavam intimamente ligadas a mulheres indígenas, ora em relação de conflito, ora em relações de afetividade e solidariedade, e eu queria entender como essas relações eram construídas. O resultado da pesquisa é que essas mulheres construíram essa relação de sociabilidade multiétnica e criaram teias de relacionamento multissociais para poderem sobreviver às condições adversas do dia a dia”.
Sobre a pesquisadora: Neta de avó curandeira, benzedeira e puxadeira, Juliane de Miranda Souza tem 20 anos e cursa Licenciatura em História. Participa do Grupo de Estudos e Pesquisa Amazônia Colonial (Gepac) e do Grupo de Pesquisa de História Indígena e do Indigenismo na Amazônia (Hindia), além de participar do Grupo de Pesquisa Impérios Ibéricos no Antigo Regime: política, sociedade e cultura, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Juliane pretende seguir na carreira acadêmica, dando continuidade aos seus estudos nos cursos de mestrado e doutorado para, consequentemente, chegar à docência. Em seu tempo livre, gosta de fazer ciclismo, aventurar-se na cozinha e tomar banho de rio. Sua dica para mulheres que desejam ingressar na pesquisa é: “Encontre um assunto de que goste e que acha que tenha algum impacto positivo para sua comunidade. Isso é essencial para não desistir no meio do caminho, mesmo que encontre dificuldades”.
Sobre a pesquisa: O artigo intitulado “Joana Maria: A Feiticeira Negra Denunciada ao Santo Ofício da Inquisição no Grão-Pará (1763-1769)” foi feito sob orientação do professor Rafael Ivan Chambouleyron (IFCH-UFPA), com financiamento Pibic/CNPq. A pesquisa foi apresentada no XXXV Seminário de Iniciação Científica da UFPA, realizado pela Pró- Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (Propesp).
Edição: Maissa Trajano
Beira do Rio Ed.173 - Dez/Jan/Fev 2024-2025
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