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Crianças sem direito à infância

Publicado: Segunda, 04 de Julho de 2016, 19h13 | Última atualização em Sexta, 26 de Agosto de 2016, 15h16 | Acessos: 3729

Estudo aponta universo de exploração e baixa aprendizagem.

Crianças envolvidas no trabalho infantil não sabem ler nem escrever
imagem sem descrição.

 Texto e ilustração: Walter Pinto

Um estudo com crianças sujeitas a regime de trabalho infantil comprovou que elas possuem grande dificuldade de aprendizagem, muitas chegando à adolescência praticamente sem saber ler nem escrever. O universo trabalhado reuniu 157 crianças na faixa etária de 10 a 14 anos, todas, de alguma forma, envolvidas no chamado trabalho infantil, matriculadas em quatro escolas estaduais dos bairros Canudos e Terra Firme, ambos na zona periférica de Belém.

O estudo embasou a tese O discurso das crianças e dos adolescentes sobre o trabalho infantil, defendida pela pedagoga Ana Paula Vieira e Souza, no Programa de Pós-Graduação em Educação, sob orientação do professor Ronaldo Marcus de Lima Araújo. A seleção também levou em conta as famílias assistidas pelo Programa Bolsa Família, uma política pública educacional que exige dos pais a manutenção das crianças e dos adolescentes na escola.

“Uma coisa que pude perceber foi que, apesar de estarem estudando, a escola está muito distante das vidas daquelas crianças. Elas vão à escola, mas não conseguem aprender. Acabam revelando o cansaço e a violência a que estão expostas”, informa Ana Paula.
A criança estudante submetida à situação de trabalho, seja para contribuir com o sustento da família, seja como empregada de terceiros, está sempre atuando em benefício de algum adulto. Entre as atividades desenvolvidas pelas crianças, a pesquisadora encontrou até mesmo as que cumpriam papel de “aviãozinho” – no jargão policial, nomina a pessoa que leva o tóxico para um comprador e volta com o dinheiro para o traficante.

A pesquisa identificou crianças trabalhando em atividades diversas na feira da Terra Firme, como em máquinas de assar frango e em improvisadas lavagens de veículos; um pré--adolescente trabalhava como chapeiro numa venda noturna de sanduíches. No caso das meninas, a pesquisadora encontrou muitas trabalhando como babá ou doméstica. Ana Paula acompanhou, durante quatro anos, aqueles pequenos trabalhadores em seus afazeres.

A observação em sala evidenciou o fosso existente entre crianças que só estudam e as que estudam e trabalham. No caso destas, a aprendizagem é sensivelmente prejudicada. Para Ana Paula Souza, “o trabalho infantil se caracteriza por uma alienação das crianças que não reconhecem seus direitos à proteção e à escola de qualidade. Elas são vítimas das suas próprias famílias, da escola pública e da ausência do Estado, que é o grande aparelho que devia protegê-las”.

 

Alienação, baixa remuneração e riscos de todo tipo

Uma das categorias de análise utilizada pela pesquisadora foi o trabalho infantil como alienação. De acordo com os dicionários de língua portuguesa, a alienação pode ser definida como um estado de despersonalização em que o sentimento e a consciência da realidade se encontram fortemente diminuídos. De Karl Marx, a pesquisadora utilizou as categorias trabalho concreto e trabalho abstrato para tratar da pedagogia do trabalho infantil.

“Por que o filho de uma classe tem que trabalhar e o filho de outra classe tem direito à natação, ao futebol, à dança, ao inglês e à escola de qualidade?”, questiona Ana Paula Vieira e Souza. A resposta pode ser encontrada na Pedagogia do Trabalho Infantil, aquela que inculca a criança em situação de vulnerabilidade a trabalhar. Por essa perspectiva, o trabalho infantil é visto como bom para os da classe trabalhadora ou mais vulnerável, mas não é visto da mesma forma para os da classe mais abastada. Ao alienar as crianças, o trabalho infantil acaba por fazê-las não se reconhecerem como crianças, como adolescentes.

Além de serem exploradas pelo trabalho infantil, quando deveriam estar estudando e brincando, elas também são exploradas quanto à remuneração. Durante a pesquisa, a maior remuneração paga às crianças trabalhadoras não era superior a 120 reais ao mês (tendo como base setembro de 2015), valor pago ao garoto que trabalhava, à noite, como chapeiro. Os valores são muito variados. A maioria recebe entre 5 e 10 reais por semana.

Além da baixa remuneração, as crianças estão submetidas à situação de risco à saúde, como a pesquisadora constatou. Um garoto que trabalhava como borracheiro sofreu um acidente ao tentar tirar o pneu de um carro e foi atingido por um parafuso que entrou no seu braço. Mesmo ferido e sem qualquer direito, o garoto teve que continuar trabalhando, pois contava com a remuneração para sobreviver.

As drogas também fazem parte do universo de muitos adolescentes em situação de trabalho infantil. Nenhum deles admitiu que consumisse drogas, mas não negou que trabalhava na venda, como “avião”. Os adolescentes são usados pelos traficantes para burlar a polícia. A pesquisadora ficou impressionada com a intimidade que os jovens demonstram com o uso de armas.

 

Nas escolas, 50% dos alunos também trabalhavam

Ana Paula Souza, mesmo defendendo o Programa Bolsa Família, chegou à conclusão de que o programa não está conseguindo afastar as crianças do mundo do trabalho, ou, pelo menos, não está conseguindo isso com todas elas. Nas escolas em que realizou o estudo, a pesquisadora observou que 50% dos estudantes estavam envolvidos em atividades de trabalho. A pesquisadora conversou com os pais dos estudantes e promoveu três palestras sobre a temática do cuidar das crianças e dos adolescentes.

Nessa etapa, contou com a colaboração de um delegado, que falou sobre o uso e as consequências das drogas; de uma psicóloga, que tratou do cuidado da família com os filhos; e de uma assistente social. “Nestes três momentos, trabalhei para que as famílias, de alguma forma, assumissem os trabalhos desenvolvidos por suas crianças”, afirma.

Uma das formas praticadas para medir o nível de leitura das crianças foi a utilização de palavras cruzadas das revistinhas da Mônica, além de utilizar filmes e atividades em que o trabalho esteve sempre presente. Essas atividades explicitaram um grave problema no processo de aprendizagem: elas não conseguiam identificar as letras.“As crianças que estão envolvidas no trabalho infantil não sabem ler nem escrever, como comprovei na minha tese. Aliás, também não sabem contar. Para elas, 20, 40 reais é muito dinheiro. Isso demonstra que elas também não têm noção de valor”, afirma a pesquisadora.

Das 48 crianças que iniciaram o grupo focal da pesquisa, 16 chegaram ao final. A maioria alegou que os pais não haviam permitido. Durante a pesquisa, houve um caso de grande impacto. Um adolescente de 14 anos foi arrancado da sala de aula pela Polícia Militar, sob a acusação de trabalhar para o tráfico. Na verdade, a acusação era direcionada aos pais, que eram traficantes. “Depois, ele contou ter sido violentado sexualmente por um dos policiais, e não contou só para mim, mas para toda a turma. Foi algo muito duro para todos nós”, lembra Ana Paula Souza.

Ed. 131 - Junho e Julho de 2016

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