Arrastão de cores nas ruas de Belém
Domingo, mês de junho em Belém. O dia amanhece na Praça da República e, aos poucos, as pessoas começam a chegar com seus chapéus de fitas coloridas e blusa estampada, movimentando o corpo ao som dos tambores, que podem ser ouvidos ao longe. Quebrando a rotina da praça, essas pessoas farão parte de um espetáculo de rua seguindo um cortejo de cultura popular que, há quase três décadas, vem dinamizando as ruas do Centro Histórico de Belém: o Arrastão do Pavulagem.
Por Daniel Sasaki Foto: Alexandre Moraes
Há 28 anos, o Arrastão se consolidou como um dos mais importantes espetáculos do cenário cultural de Belém. Entender a representatividade dessa manifestação cultural e o seu valor simbólico foi o que motivou o pesquisador Edgar Monteiro Chagas Júnior, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, a elaborar a Tese Pelas ruas de Belém: produção de sentido e dinâmica cultural nos Arrastões do Pavulagem em Belém do Pará, orientada pela professora Carmen Izabel Rodrigues.
Não foi à toa que Edgar escolheu o Arrastão do Pavulagem como seu objeto de estudo. Durante a maior parte de sua vida, o pesquisador esteve envolvido com manifestações culturais. “Eu tenho uma relação de muitos anos com a cultura popular do nosso Estado. Desde muito novo, acompanhava o carimbó, o boi-bumbá, mas sempre como uma coisa distante. Por ser muito jovem, não compreendia a importância daquelas manifestações culturais”, conta.
Pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o pesquisador participou de vários inventários culturais, como o da Ilha do Marajó e o do Carimbó, este último deu base para que esta forma de expressão da cultura paraense se tornasse patrimônio cultural brasileiro.
A escolha do Arrastão do Pavulagem para a pesquisa de doutoramento teve uma motivação especial. Antes de se dedicar à vida acadêmica e ao estudo da cultura popular, Edgar Chagas Júnior já era componente da banda Arraial do Pavulagem e um dos organizadores do Arrastão. “Quando passei no vestibular, em 1997, eu já estava na banda e, enquanto estudava as manifestações culturais na Academia e, posteriormente, no IPHAN, continuava como músico e aproveitava todas as informações que conseguia sobre as manifestações culturais do Estado e passava para dentro do Arraial do Pavulagem, por meio de palestras e oficinas”, lembra.
“A banda desceu do palco e o público virou espetáculo”
De acordo com Edgar Chagas Júnior, o Grupo Arraial do Pavulagem foi criado no final da década de 1980, com o formato de banda. A partir de um determinado momento, surgiu a necessidade de inverter a ordem. “Há práticas culturais que são estagnadas, nas quais o espetáculo é ativo e a plateia é passiva. De acordo com as entrevistas que fiz com os fundadores e representantes do movimento, houve a necessidade de se inverter essa ordem. ‘Queríamos descer do palco e ir para a rua’, foi o que eles disseram”, conta o pesquisador.
A proposta era criar um motivo, algo que fizesse com que as pessoas acompanhassem a banda. Daí surgiu a ideia do boi-bumbá, pois muitos participantes da banda já tinham uma experiência com essa manifestação cultural. O Arrastão teve seu processo embrionário na Praça da República, nos arredores do Teatro Waldemar Henrique, como um pequeno cortejo com a intenção de levar ou “arrastar” as pessoas atrás de um boizinho feito de miriti, ao som de barricas e cantorias, mas também como uma maneira de contestação pelo fechamento de espaços públicos para as manifestações culturais locais.
“As pessoas começam a andar na Praça da República com um boizinho espetado numa tala e a ideia era ir convidando as pessoas ou, como eles dizem, ‘arrastando’. A ideia do arrastão surgiu daí, das pessoas se movimentarem e, de repente, isso foi ganhando corpo. A banda desceu do palco e o público virou o espetáculo”, explica Edgar. Com o passar do tempo, o Pavulagem saiu da Praça da República e foi para a Avenida Presidente Vargas.
Em 2000, foi inaugurado o Instituto Arraial do Pavulagem, uma instituição não governamental, que tem por objetivo estabelecer uma organização institucional dos eventos promovidos pelo grupo, com vistas à divulgação de suas ações em conjunto com as demais manifestações culturais do Estado.
Além da musicalidade, também há uma identidade visual característica do Arrastão. O boi-bumbá, os vaqueiros, os cavalinhos, os cabeçudos são alguns dos elementos que dão uma visualidade plástica ao evento. “A estes elementos chamados de objetos brinquedos, somam-se os estandartes com as imagens dos santos juninos, que vão à frente abrindo o cortejo. O próprio batalhão (tocadores) organiza-se baseado em uma uniformização com camisas estampadas com gravuras alusivas ao universo simbólico do cortejo. O Arrastão é formado por alas e em cada uma delas existe um mote de significação, que dá o sentido do cortejo. Tudo ocorre pela manhã, pois a intenção é atingir todos os públicos e de todas as idades”, explica Edgar Chagas Júnior.
Símbolo: chapéu de fita é usado por integrantes e plateia
Primeiramente, os arrastões eram realizados apenas em junho, na quadra junina, mas logo se espalharam por outros festejos. Em outubro, surgiu o Arrastão do Círio, que, além dos elementos tradicionais, traz elementos da Festa do Círio de Nazaré, como os brinquedos de miriti. Os instrumentos musicais também são modificados, além da conjuntura musical. “Cada cortejo tem uma imagem, tem uma identidade própria”, afirma Edgar Chagas Júnior. Também surgiu o Cordão do Peixe-Boi, com uma temática voltada para o meio ambiente. Atualmente, não há uma data fixa para a realização do cortejo. Ele é realizado durante o ano, em parceria com alguns eventos de natureza pública, normalmente, associados à temática social e cultural.
Neste contexto, um símbolo visual ganhou espaço: o chapéu de fita. Ele criou uma identidade para o movimento e é usado pela banda e pelas pessoas que participam do Arrastão. “Aquela parte do centro histórico fica colorida, com cada pessoa, de uma maneira ou de outra, se sentindo pertencente à festa e, de fato, pertencem. Cria-se um ato motivacional, uma plateia que não apenas vai assistir a um show, mas também vai interagir com ele”, afirma o pesquisador.
Uma das preocupações do pesquisador foi identificar as motivações dos participantes em relação ao Arrastão. “Eu queria entender o que faz um grupo de pessoas da cidade promover uma ação cultural de rua, em formato de cortejo, mas não é uma manifestação cultural igual ao boi-bumbá, ao pássaro junino ou ao carimbó”, explica.
Para o pesquisador, o movimento de busca pelas raízes culturais tradicionais por causa de questões que envolvem a globalização e a gradativa perda de identidade dos lugares fez aflorar discussões sobre patrimônio e patrimonialização, “e o Arrastão faz parte desse contexto”. A ressignificação do Centro Histórico, o seu uso festivo e a sociabilidade entre os participantes dos Arrastões também foram analisados pelo pesquisador.
Para Edgar, não há como entender uma manifestação cultural fora do seu contexto. “O Arrastão do Pavulagem não é uma manifestação restrita ao seu espaço de ação, ele obedece a um contexto mais amplo. Algumas pessoas dizem que o Pavulagem já é tradição, mesmo que ele não se proponha a isso. Ele se inspira em outras manifestações culturais, ao mesmo tempo fazendo as suas próprias letras e os seus próprios ritmos musicais. Ele possui a sua própria identidade. O Pavulagem não é um boi-bumbá, não é uma quadrilha junina, não é um cordão de pássaro, o Pavulagem é o Pavulagem”, conclui o autor.
Ed. 131 - Junho e Julho de 2016
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