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Processo educativo em um templo de candomblé

Publicado: Terça, 20 de Fevereiro de 2018, 15h00 | Última atualização em Terça, 20 de Fevereiro de 2018, 19h01 | Acessos: 3415

Oralidade é o recurso mais utilizado com crianças e adolescentes

imagem sem descrição.

Por Renan Monteiro Fotos Acervo da Pesquisa

“Nós precisamos de ações que façam dos alunos sujeitos de direitos. Independentemente da religião, da cor ou da condição financeira, eles precisam estar representados no currículo escolar”, reflete a professora Gisele Nascimento Barroso, sobre a falta de representatividade religiosa no ensino das crianças brasileiras “não cristãs”. Pedagoga e antropóloga, Gisele apresentou no Programa de Pós-Graduação em Educação (ICED/UFPA) a dissertação Educação e tradição de crianças e adolescentes praticantes de candomblé Ketu, os Èwe do Ofá Karé, sob a orientação do professor Carlos Jorge Paixão.

O interesse da professora em saber como ocorrem os processos de educação em um templo de matriz africana surgiu por diversos motivos. Ela trabalha com relações étnico-raciais desde 2002, seu primeiro contato com a questão ocorreu durante um estágio no Museu da Universidade Federal do Pará, durante o qual colaborou com a organização de jornais antigos doados pelo historiador Vicente Salles ao Mufpa. Além disso, seu Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) envolveu as relações raciais dentro do contexto de uma escola pública em Belém.

No entanto o estopim para a escolha do seu tema de pesquisa aconteceu durante o Projeto “Literatura Infantil, a construção da identidade da criança no ensino fundamental a partir de contos africanos”, em 2012, na Escola Nossa Senhora da Conceição, em Icoaraci. “Lá, percebemos que várias crianças eram de terreiro, mas não falavam sobre isso porque as religiões cristãs eram as aceitas. Quando o projeto foi desenvolvido, percebi as crianças à vontade para falar sobre a sua religiosidade e percebi que elas traziam muito conhecimento”, descreve Gisele Barroso.

O contexto do templo Ilê Iyá Omi Asé Ofá Kare

A professora Gisele Barroso realizou uma pesquisa participante, inserindo-se nas atividades que ocorriam no templo Ilê Iyá Omi Asé Ofá Kare, localizado no Conjunto Maguari, na Região Metropolitana de Belém. Para participar das cerimônias destinadas somente aos “filhos da casa”, Gisele passou por um processo de diálogo e conciliação com o babalorixá Edson Catendê, administrador do templo, e foi possível participar intensamente do cotidiano local.

São várias nações que constituem o candomblé: Ketu, Angola, Jeje, Umbanda, entre outras. Essas identificações vêm do local de origem dos africanos que chegaram ao Brasil no período colonial. O Ofá Kare faz parte da nação Ketu, uma ramificação do terreiro Ketu Iyá Omi Axé Ìyamase, conhecido também como Gantóis (Cantuá). Este, por sua vez, foi fundado em 1849 e tem como origem ancestral o primeiro terreiro de candomblé de nação Ketu em Salvador (BA), o terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká fundado em 1735. O Gantóis está dentro da linhagem dos primeiros terreiros de candomblé do Brasil.

Ofá Kare está completando 30 anos, desde seu surgimento, com a vinda de baianos para a capital paraense. Dentro de cada nação, existem vários templos, são mais de 1.400 terreiros na Região Metropolitana de Belém, sendo mais de 40 da nação Ketu. Durante a pesquisa, Gisele Nascimento Barroso tornou-se uma nova filha do Ofá Kare. “No processo de observação participante, me tornei abiã (aquele que começa a vida espiritual) e, hoje, sou um embrião naquela casa, de pesquisadora passei a aprendiz”, revela.

O tempo cronológico e o processo de “feitura”

Um aspecto importante nas comunidades de terreiro é a cronologia diferenciada de idade dos seus membros. A partir do momento em que duas ou mais pessoas entram no chamado processo de feitura (momento de acolhimento e de aprendizado) dentro da Casa, elas são consideradas recém-nascidas independentemente da idade que têm. Quando elas saem desse processo como Iaô (recém feito), são consideradas com o mesmo nível de experiência. Portanto o tempo de feitura determina quem é considerado jovem e quem é considerada uma pessoa mais velha, a quem o respeito é primordial.

“Há crianças na minha Casa de Axé que o processo de feitura começou na barriga da mãe e, hoje, com sete ou oito anos, são mais velhas em relação a mim, que ainda não sou feita. Então, tenho todo respeito para com essas crianças”, explica a professora Gisele Nascimento Barroso.

Quem define quando os membros da casa de axé passarão pelo processo de feitura são seus Orixás. Gisele explica como ocorre o processo: “Quando eu ofereço a minha cabeça ao meu orixá, entro no processo de feitura. É como um embrião humano que passa por um momento de formação, requer cuidado até o momento do nascimento para o axé. Então começa a minha vida como filho de santo daquela casa e terei as minhas obrigações dentro do princípio de que cada folha tem a sua função”.

O Templo Ofá Karé possui algumas ações para promover a visibilidade da cultura africana.  O grupo de afoxé Ita Lemi Sinavuru traz a musicalidade como elemento de resistência e de afirmação de identidade negra. A Associação dos Filhos e Amigos do llé Asé Iyá Omique Ofá Kare (AFAIA) desenvolve projetos educativos de valorização da identidade negra, e um desses projetos é o “Africanidades em Movimento”, em andamento na Escola Estadual XV de Novembro, em que a professora Gisele atua.  

Conversas com os mais velhos e cooperativismo

Para a cultura africana, a oralidade como transmissão de conhecimento foi importante para manter essa cultura religiosa viva até hoje. A oralidade foi a principal forma de transmissão de conhecimento, e esse costume persiste até hoje nas comunidades, como é o caso dos filhos do Templo Ofá Karé.

“No templo, existe um processo de aprendizagem que não ocorre com a escrita. Os cânticos e as histórias são aprendidos com as conversas com os mais velhos. Na dissertação, discuto se esse processo educativo é válido tanto quanto o processo formal, e observei que sim”, afirma Gisele Barroso.

O ambiente educativo do Ofá Karé é marcado pela tradição do sagrado e pelo cooperativismo entre os filhos da casa. Todos sentem a necessidade de preservar e manter a energia vital, o axé. As pessoas que fazem parte da casa não são necessariamente do entorno da região. Há pessoas de Abaetetuba, Castanhal e Mosqueiro.

Desde cedo, as crianças do templo têm uma educação bilíngue, aprendem a “cantar as folhas”, reverenciar seus Orixás, respeitar os mais velhos, tanto em português quanto em Iorubá, língua da nação Ketu, da qual o Templo faz parte.

Pela sua experiência de mais de 20 anos como professora, Gisele percebe que, dentro das escolas, ainda não são valorizadas as matrizes étnicas e religiosas consideradas minorias em uma sociedade dominada por religiões cristãs. “Essas culturas religiosas, não apenas o candomblé, permanecem invisíveis”, afirma.

A discriminação e o estigma com crianças e com adultos de tradições religiosas de matriz africana são fatos incontestáveis. São inúmeros os relatos de violência moral e física. “Nós estamos no processo de desconstrução, de enxergar que, para além daquele processo educativo institucionalizado, registrado, escrito, existem outros processos que são tão válidos e legítimos”.

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