Entrevista: A barbárie está à espreita
Professor alerta para a banalização e a naturalização do crime
Por Walter Pinto Foto Alexandre de Moraes
Autor de importantes livros sobre o socialismo soviético, as esquerdas brasileiras e a ditadura civil-militar de 1964, o historiador Daniel Aarão Reis, professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), é uma referência da história do tempo presente. Recentemente, ele esteve na UFPA, como palestrante do seminário 1968 – cinquenta anos depois. No final dos anos 1960, ele lutou contra a ditadura, tendo participado do sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, em troca da libertação de presos políticos. Nesta entrevista, o historiador fala do legado dos anos 1960, diz que violência indiscriminada é uma ameaça à democracia e considera uma “aberração” a implementação do impeachment como dispositivo constitucional.
O legado dos anos 1960
Segundo o ponto de vista que venho defendendo e que defendi em palestra no seminário promovido na Universidade Federal do Pará, nos anos 1960, houve um embate maior entre paradigmas de mudança social - o paradigma fundado nas revoluções russas, entre 1905 e 1921, e o que apareceu justamente nesses anos 1960. O primeiro era baseado nas revoluções catastróficas, na tomada do poder pela violência e, a partir daí, na realização de reformas sociais, econômicas, políticas e culturais. Já o segundo baseava-se na progressiva persuasão das consciências e na gradual conquista de direitos, com uma diminuição drástica do emprego da violência, embora esta não fosse completamente excluída como hipótese. No primeiro caso, a tomada do poder do Estado era condição decisiva para que a revolução se concretizasse. No segundo caso, a perspectiva de uma revolução estendia-se no tempo, registrando-se gradualmente conquistas dos mais diferentes tipos. Creio que a afirmação desse segundo paradigma é o maior e o melhor legado dos anos 1960.
Édson Luis (1968) e Marielle Franco (2018): aproximações
O maior risco que corremos atualmente é a banalização do crime e do assassinato em particular. A barbárie de uma violência indiscriminada nos espreita e vem se tornando uma das principais ameaças à democracia brasileira. A sociedade precisa reagir a esse processo, não naturalizar esses crimes e começar a proteger as lideranças populares, pois elas estão sendo abatidas como se fossem insetos. Trata-se de algo inaceitável.
O assassinato de Edson Luis Lima e Souto, em março de 1968, suscitou indignação maciça e justa. No entanto, com o passar do tempo, o assassinato banalizou-se, condicionando o mergulho da sociedade brasileira nas trevas densas de uma ditadura “escancarada”, que se perfilou a partir da edição do malfadado Ato Institucional n° 5. Que isso não se repita agora, após o assassinato de Marielle Franco, que os executores e os mandantes do crime sejam encontrados, julgados e condenados. É o mínimo que se precisa. Por outro lado, para defender nossa democracia, as forças progressistas precisam se unir para combater a barbárie do crime organizado. Este vem se tornando uma das principais ameaças à ordem democrática existente. Por mais lacunar e imperfeita que seja, a democracia atual oferece um patamar que precisa ser melhorado, não destruído.
Ditadura militar
O Estado de exceção, que caracteriza qualquer ditadura, encerrou-se no Brasil com a revogação dos atos institucionais, em 1° de janeiro de 1979. Subsistiu o que as oposições chamavam, então, um “entulho autoritário”, mistura de leis, emendas constitucionais e uma constituição imposta pela própria ditadura, a de 1967, ou em outras palavras, um Estado de direito autoritário. Subsistiu ainda um general-presidente - João Figueiredo - “eleito” ainda nos marcos da ditadura, mas cujo governo já não se daria nos marcos da ditadura. Começou, então, a partir de 1979, uma transição difícil, complexa, marcada pela transação entre forças opostas. Como disse em livro sobre o assunto: “já não tínhamos uma ditadura, mas ainda não havia uma democracia”, o que só aconteceria em 1988, quando foi aprovada uma nova Constituição.
Estabelecer como marco o ano de 1985, com a posse de José Sarney, não se sustenta política ou historicamente. Por que era um líder civil? Mas fora um líder civil da ditadura! Por que os generais já não presidiam o País? Mas o último general a presidir o País não mais o presidira como ditador, mas como presidente de um Estado de direito autoritário. Não tinha a seu dispor instrumentos de exceção, como os atos institucionais, que caracterizavam a ditadura. Nem as corporações militares reinavam indisputadas como na época da ditadura. Entre 1979 e 1988, não havia mais presos políticos no País, havia pluripartidarismo, liberdade de organização sindical e liberdade de imprensa. Diversos movimentos de greve geral e a campanha “Diretas-Já” ocorreram praticamente sem enfrentar repressão. Como caracterizar, nessas condições, uma ditadura no País? Uma impropriedade, sem dúvida.
A historiografia e o Golpe de 1964
Estudamos e continuamos a estudar as esquerdas e as organizações de luta armada em particular. Nada mais legítimo. Numa escala menor, estudamos também as instituições políticas e culturais da época da ditadura. Devemos continuar esses estudos. Entretanto há uma lacuna maior, observada e registrada nos debates que aconteceram em 2014, por ocasião do cinquentenário da instauração da ditadura: quero me referir às complexas relações entre a ditadura e a sociedade deste país. O apoio de parcelas importantes da população à instauração da ditadura parece bem estabelecido, embora ainda muito pouco estudado. Trata-se de elucidar como evoluiu no tempo a relação entre os governos ditatoriais e o cotidiano da população brasileira, nos grandes centros, nas cidades pequenas e nas várias regiões do País. Como se relacionaram com a ditadura as mulheres e os homens comuns. Eis o desafio maior à nossa historiografia sobre a época da ditadura. Com estudos a esse respeito, teremos mais luzes sobre as tendências conservadoras neste país, como se definiram e se redefiniram essas tendências no quadro da ditadura.
O impeachment da presidente Dilma
Não concordo com a interpretação de que houve um golpe no Brasil em 2016. Houve, sim, o acionar de um dispositivo constitucional essencialmente autoritário, o impeachment. O impeachment transfere a algumas centenas de pessoas o direito de cassar alguém eleito por milhões de pessoas. Nada mais autoritário. Infelizmente, as forças progressistas e as esquerdas em particular não discutiram melhor essa questão na Constituinte que elaborou a atual Constituição, promulgada em 1988. Não apenas não discutiram, mas também não denunciaram com vigor necessário a aprovação do impeachment como dispositivo constitucional. Finalmente, utilizaram o dispositivo tanto para cassar o presidente Fernando Collor como para tentar cassar o presidente Fernando Henrique Cardoso. Mesmo depois do impeachment de Dilma Rousself, não é incomum encontrar parlamentares progressistas a solicitar impeachment de governadores e prefeitos. Uma aberração, já que existe no Direito Constitucional a possibilidade do chamado “plebiscito revocatório”, quando, mediante um determinado número de assinaturas, pode-se obrigar o/a eleito/a a submeter-se novamente, antes do término de seu mandato, ao escrutínio popular. Trata-se de inserir esse novo dispositivo em nossa Constituição, jogando no lixo o impeachment. O que se deve denunciar, em suma, é o impeachment como dispositivo essencialmente autoritário e reunir forças para revogá-lo da Constituição brasileira. E não usá-lo em proveito próprio e caracterizá-lo como “golpe” quando ele se vira contra um/uma representante das forças populares.
Quanto a transformar o impeachment numa disciplina específica, creio que se trata de um claro “desvio de finalidade”. Pode-se realizar seminários, simpósios e debates a respeito do assunto. Mas fazer disso uma disciplina me parece impróprio - uma excessiva politização dos quefazeres acadêmicos. Entretanto, em nome da liberdade acadêmica, as pessoas que assim pensam têm todo o direito de propor essa questão como disciplina, enfatizando-se a liberdade de expressão irrestrita que deve presidir os trabalhos de pesquisa em qualquer universidade.
Ed.143 - Junho e Julho de 2018
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