Resenha: O Círio e a “cara do Brasil”
O Círio e a “cara do Brasil”
Por Walter Pinto Foto Reprodução
Círio de Nazaré: patrimônio cultural brasileiro fala sobre a mais antiga festa religiosa da Amazônia, fundada há mais de 200 anos, cujas origens ultramarinas remetem ao milagre fundador da devoção a Nossa Senhora de Nazaré, no século XII, em Portugal. O Círio paraense é aqui analisado, na sua integralidade, pelas lentes da História e da Antropologia, pelo historiador Márcio Couto Henrique. Uma das contribuições mais originais deste estudo é analisar o Círio como um espelho multifacetado que reflete a “cara do Brasil”, fator decisivo para que recebesse o reconhecimento como patrimônio cultural imaterial brasileiro, pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional, em 2002. Márcio, aliás, é autor do estudo que subsidiou a proposta de reconhecimento enviada ao Iphan.
Como patrimônio cultural, o Círio pertence a todos os brasileiros, inclusive aos que não seguem a religião católica. É o que o autor se empenha em explicar aos leitores por meio de argumentos sólidos e de uma narrativa clara e objetiva, que torna este livro indicado para todos os níveis de ensino, assim como para o público em geral.
O Círio que vemos passar pelas páginas do livro não é apenas aquele tradicional, restrito às romarias que superlotam as ruas de Belém, mas também o das manifestações culturais criadas à margem da grande romaria do segundo domingo de outubro, como o arraial de Nazaré, o Auto do Círio e a Festa das Filhas da Chiquita, as quais, com o tempo, se impuseram no calendário da festividade, mesmo ao arrepio da Igreja, que, de diversas formas, tenta negar-lhes legitimidade.
Ao discutir o Círio como um bem-sucedido case de patrimônio cultural imaterial brasileiro, o autor proporciona um interessante exercício de reflexão sobre a formação da identidade cultural brasileira, e nos aponta aquilo que, imersos no acontecimento, já nem percebemos: as várias formas de se conhecer o Brasil e os brasileiros por meio do conjunto de romarias que formam o Círio.
Essa “cara do Brasil” que o Círio revela remete inicialmente à história da colonização do País pelos portugueses, que, entre tantas contribuições, nos legou a fé em Nossa Senhora de Nazaré e um modelo de procissão copiado pelo também português Francisco de Souza Coutinho, o governador do Grão Pará, que, em 1793, organizou a primeira procissão em louvor à Virgem de Nazaré, em Belém. Tanto o Círio português como o paraense misturam religião e diversão, fé (o milagre) e festa (o arraial).
O autor de “Círio de Nazaré: patrimônio cultural brasileiro” mostra-nos que o Círio também revela a “cara do Brasil” por meio de uma crença comum à maioria dos brasileiros: a fé no milagre. Para os católicos, os santos podem interceder, junto a Deus, para que o milagre possa acontecer em suas vidas. Protestantes, por sua vez, não acreditam na intermediação dos santos, no entanto, como os católicos, acreditam num Deus com poder de fazer milagres. Os romeiros do Círio sintetizam esta fé. Os ex-votos que levam à procissão em agradecimento pelas graças alcançadas, em suas diversas formas, são testemunhos do milagre de Deus. O Círio, portanto, não reflete apenas a fé católica, mas a de todas as religiões que acreditam no milagre divino.
Entre outras formas de se reconhecer o Brasil e os brasileiros na grande procissão do Círio, Márcio Couto cita um aspecto muito valorizado entre nós: a solidariedade. “Ser solidário é estar junto nos momentos difíceis. No Círio de Nazaré, vemos a solidariedade em muitas promessas feitas para a Virgem de Nazaré. Muitas pessoas fazem pedidos pela cura de amigos e parentes. Depois, vão pagar a promessa feita à santa. (...) Por causa da grande solidariedade que existe durante o Círio de Nazaré, muitos dizem que ele é o Natal dos Paraenses.”
Esta solidariedade vem estreitando as relações nem sempre cordiais entre católicos e protestantes. Para citar um exemplo, basta lembrar a base de apoio aos romeiros que um templo de uma igreja evangélica instala no início da Avenida Nazaré, para distribuição de água e lanches aos romeiros. Muitos podem descansar da longa e, por vezes, penosa caminhada naquele templo, que mantém portas abertas a todos. O Círio muda não só o “clima” da cidade, como também mexe com as emoções e os sentimentos dos paraenses.
“Círio de Nazaré: patrimônio cultural brasileiro” chega às livrarias junto com a quadra nazarena. É um livro que tem tessitura narrativa bem concatenada, segundo uma lógica que faz cada período remeter ao seguinte. O texto flui com facilidade, o que torna a leitura agradável e, por isso mesmo, indicada a todos os leitores.
Serviço: Círio de Nazaré: patrimônio cultural brasileiro. Márcio Couto Henrique. Editora: Açaí.
Ed.133 - Outubro e Novembro de 2016
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