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Opinião

Publicado: Terça, 28 de Maio de 2019, 13h45 | Última atualização em Terça, 28 de Maio de 2019, 15h41 | Acessos: 75923

 O paradoxo das ações dos macrófagos do sistema nervoso central: guardiões que podem matar

imagem sem descrição.

Por Walace Gomes Leal Foto Acervo do Pesquisador

O cérebro humano possui cerca de 86 bilhões de neurônios e trilhões de sinapses (unidades de computação neural que passam o impulso nervoso de um neurônio a outro) e é, certamente, uma das estruturas mais complexas existentes. Interações físicas entre os bilhões de neurônios, sob a forma de circuitos neurais, permitem- nos perceber o universo externo que nos cerca, um modelo da realidade, realizar movimentos, pensar, fazer planos, ter emoções e diversas outras atividades inerentes ao ato de viver. No entanto, para desempenhar todas essas funções, a integridade neural deve ser mantida, o que é conseguido com o auxílio de uma outra população de células do Sistema Nervoso Central (SNC) ainda mais numerosa que neurônios, as células da glia (micróglia, astrócitos, oligodendrócitos, células ependimárias).

As células gliais são fundamentais para a manutenção da integridade neural, mas, quando doenças agudas (Acidente Vascular Encefálico- AVE, trauma) ou crônicas (doenças de Alzheimer, Parkinson, Huntington, Esclerose lateral amiotrófica, Esclerose múltipla, Epilepsia) do SNC ocorrem, elas reagem (gliose) com consequências benéficas e prejudiciais.

As células da micróglia são os macrófagos residentes do SNC que fazem um patrulhamento constante, protegendo-nos contra infecções por vírus, fungos e bactérias. Descobriu-se, utilizando imageamento por microscopia de dois fótons (uma técnica que permite ver movimento de células no cérebro de um animal vivo), que as células da micróglia fazem, constantemente, uma varredura completa do cérebro, movimentando, aleatoriamente, seus longos e finos ramos, portanto são guardiãs benéficas da integridade neural. Paradoxalmente, evidências científicas mostraram que, em várias doenças do SNC, células microgliais ativadas pelo processo lesivo (microgliose) podem matar neurônios, apesar de serem benéficas em várias situações experimentais. Isso é conhecido como a “face de Janus”, em alusão a Janus, o deus da mitologia romana que denota dualidade e contradições. Inexiste uma explicação definitiva para a “face de Janus” da função microglial.

Recentemente, desenvolvemos uma hipótese para explicar a dualidade da função microglial: a “hipótese do fogo amigo”1. Descrevemos a hipótese em detalhes em um artigo de revisão publicado na revista científica Neural Regeneration Research2. De acordo com essa hipótese, em doenças como Acidente Vascular Encefálico (AVE) e trauma, as células da micróglia usam as mesmas armas bioquímicas que deveriam ser utilizadas para combater e eliminar patógenos, mas, de forma equivocada em uma espécie de efeito colateral ao processo lesivo, usam-nas contra neurônios, matando-os em uma espécie de “fogo amigo”.

As células da micróglia reconhecem a presença de bactérias, vírus e fungos por possuírem receptores em suas membranas, os receptores de reconhecimento de padrões (do inglês, PRRs), que são ativados por outros receptores presentes nas membranas destes patógenos, os chamados padrões moleculares associados a patógenos (do inglês, PAMPs). Em 2012, quando investigávamos o papel da micróglia na neurogênese adulta após AVE experimental em ratos 2, vimos que, em uma mesma região do SNC, conhecida como estriado, células microgliais benéficas e prejudiciais pareciam existir, dependendo da intensidade da lesão e da região anatômica observada. Propusemos que gradientes de diferentes estímulos teciduais existiam naquele ambiente patológico ligando receptores específicos na membrana microglial, ativando diferentes vias bioquímicas com consequências benéficas e prejudiciais para o cérebro dos animais. Essa observação inicial foi fundamental para o desenvolvimento da “hipótese do fogo amigo”. 

Já é estabelecido que células morrendo ou em estresse excessivo liberam “sinais de perigo”, os quais são substâncias que podem ativar receptores nas membranas de macrófagos em vários tipos de tecido. A “hipótese do fogo amigo” usa a premissa de que alguns “sinais de perigo” são substâncias muito parecidas com aquelas liberadas por patógenos, o que as faria ativar os mesmos receptores (como os receptores tipo toll) ou receptores não identificados normalmente ativados por agentes infecciosos, em doenças que não são infecciosas na sua origem, como AVE, trauma e Alzheimer.

Se a hipótese descrita for confirmada, o bloqueio dos receptores mencionados poderia proteger o sistema nervoso evitando lesão excessiva em diversas doenças do SNC. Recentemente, aprovamos um projeto no edital universal 2019 do CNPq para testar a “hipótese do fogo amigo”. Nossos resultados preliminares sugerem que a lesão induzida por um AVE experimental é bem maior na presença de infecção bacteriana, o que está de acordo com a hipótese aqui discutida.

Estudos futuros devem estabelecer que a identidade dos “sinais de perigo” estão associados ao processo lesivo e que os receptores são ativados na membrana microglial, podendo vir a contribuir para o desenvolvimento de fármacos neuroprotetores, o que ainda não está disponível para minimizar a lesão e as perdas neurológicas após AVE e outras doenças do SNC humano.

Walace Gomes Leal - Professor Associado do Instituto de Ciências Biológicas - Laboratório de Neuroproteção e Neurorregeneração Experimental

Legenda: Ativação microglial após um AVE experimental em ratos. As células da micróglia deixam de ser ramificadas (A), tornam-se intermediárias (B), ameboides (C) e, finalmente, arredondadas com aspecto de fagócitos (D). As células são verdes, pois foram marcadas com um anticorpo secundário conjugado a uma molécula fluorescente (Alexa 488). Adaptado de Gomes-Leal, 2012.

Leitura sugerida:

  1. Gomes-Leal W (2019). Why microglia kill neurons after neural disorders? The friendly fire hypothesis. Neural Regen Res 14: 1499-1502.
  2. Gomes-Leal W (2012). Microglial physiopathology: how to explain the dual role of microglia after acute neural disorders? Brain Behav 2: 345-356.

A versão original deste artigo pode ser lida em http://www.nrronline.org/text.asp?2019/14/9/1499/255359 

Ed.149 - Junho e Julho de 2019

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