A história por trás do samba-enredo
Em 1980, as escolas cantam a redemocratização e a cultura local
Por Renan Monteiro Ilustração Caio Semblano
Quando se fala em carnaval paraense, as referências históricas ainda são escassas. Vicente Salles e Alfredo Oliveira são alguns dos historiadores paraenses que abordaram o tema nas últimas décadas. Essa carência de pesquisas sobre esse fenômeno cultural na região amazônica instigou a pesquisadora Dayse Maria Pamplona Puget, do Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da UFPA, a escrever a dissertação Amanheceu, Paid’égua! O sonho cabano faz samba de enredo no carnaval paraense.
Orientada pela professora Liliam Barros Cohen, a dissertação buscou compreender como ocorreram os processos composicionais de três sambas de enredo de três escolas de samba de Belém. Os sambas de enredo analisados foram: Amanheceu (1985), do Grêmio Recreativo Jurunense Rancho Não Posso Me Amofiná; Paid’égua (1986), do Império de Samba Quem São Eles (1986) e Sonho Cabano (1985), da Escola de Samba Acadêmicos da Pedreira.
Samba de enredo, segundo Dayse Puget, é uma subclassificação do samba, sendo diferente deste último em alguns aspectos, como ter um objeto definido e contar uma história (enredo) escolhida pela escola de samba. “Os enredos podem ter temas diversos, como a história da escola, personagens históricas ou a cultura regional. É feita uma sinopse desse samba e o compositor trabalha dentro dela. O desfile da escola vai ser definido pelo enredo cantado pelo samba-enredo. Nos 400 anos de Belém, cada escola fez um samba de enredo sobre o mesmo tema, porém com abordagens diferentes”, explica.
A dissertação teve fundamentação na Etnomusicologia e, para tanto, foi feito um levantamento bibliográfico extenso sobre obras de etnomusicólogos, carnaval, samba-enredo e história oral. Também foram feitas pesquisas sobre ditadura militar e Cabanagem, pois esses temas são abordados em dois dos sambas de enredo escolhidos.
O próximo passo foi entrevistar os compositores. “Nós não fizemos entrevistas com todos os compositores, visto que alguns já faleceram e um se encontrava enfermo. Com essas entrevistas, conseguimos compreender o processo composicional de cada um”, explica Dayse Puget.
Folclore, lendas e personalidades
No Brasil, ou mais especificamente no Centro Sul, as primeiras manifestações carnavalescas ocorreram como entrudos – manifestações festivas que antecediam o período da Quaresma Cristã e foram trazidas pelos colonizadores portugueses em meados do século XVI. Depois da extinção ou reformulação dos entrudos e de outras manifestações de caráter carnavalesco, começou a ser formado o carnaval mais “moderno”.
No Pará, o carnaval surgiu dessa mesma forma, iniciando-se com os entrudos no século XVII e, posteriormente, com outras formas carnavalescas, entre elas os bailes de salão, o corso e os blocos. Depois de algum tempo, o carnaval paraense foi adquirindo características propriamente amazônicas. Alguns sambas de enredo trabalham com temas mais característicos da região, abordando o folclore, as lendas, as personalidades paraenses, além do uso de materiais regionais nas fantasias e nos adereços, mas sem distanciar-se do padrão “nacional”.
Para a dissertação, a escolha dos sambas-enredos se deu por diversos motivos. O enredo Paid’égua, por seu caráter e por sua linguagem regional; Amanheceu e Sonho Cabano, em razão de suas abordagens historicamente importantes para o Pará e para o Brasil. “Escolhi o Sonho Cabano por ser a Cabanagem um tema pouco divulgado, apesar de ser um momento histórico profundo e importante. Em que pese o tema, este samba tem conexões com o momento político por que o Brasil estava passando, que era a ditadura militar. Amanheceu também aborda a ditadura militar”, esclarece a autora.
Redemocratização – Em 1985, o Grêmio Recreativo Jurunense Rancho Não Posso Me Amofiná desfilou na Avenida Visconde de Souza Franco com o enredo Amanheceu. Dayse Puget percebeu que o conteúdo desse samba-enredo tinha um sentido conotativo, remetendo indiretamente à redemocratização do País, ao movimento “Diretas Já” e ao fim do regime militar. Osvaldo Garcia, músico popular, foi compositor do enredo, e ele, em entrevista à autora, afirmou que gostaria de ter acrescentado em Amanheceu a frase “diretas já”, porém foi aconselhado a fazer o contrário e, então, a frase foi substituída por “é carnaval”.
Também em 1985, a Escola Acadêmicos da Pedreira trouxe para o desfile de carnaval outro tema importante, a Cabanagem. O Sonho Cabano foi composto por Alfredo Oliveira e Paulo André Barata. Sua letra destaca os ideais cabanos de liberdade e justiça social. Expressões como “Ferir o ar da servidão” e “Meu Pará” remetem a um sentido de reconhecimento do imperialismo europeu e de pertencimento e patriotismo, respectivamente.
O Paid’égua, do Império de Samba Quem São Eles, é assinado por sete compositores, dos quais Dayse entrevistou três: Alfredo Oliveira, Edyr Augusto Proença e Laury Garcia. Mais distante de um peso político, o samba de enredo Paid’égua girou em torno de seu próprio nome, sendo definido subjetivamente para cada compositor. “Paid’égua” pode ser tanto “curtir a juventude” quanto “saber envelhecer”.
Sobre o perfil dos compositores, a autora diz que ele é diverso. “No grupo que entrevistei, alguns possuem nível superior e outros se dedicaram, a vida toda, à música. Não posso dizer que eles têm um único perfil”, ressalta.
Muito mais do que dias de folia e diversão
Para Dayse Puget, pouco se fala da relevância cultural do carnaval. Seja como um movimento subversivo, seja como uma manifestação festiva que reflete a nossa realidade político-social, seja como um evento elitista ou popular, o carnaval é muito mais do que dias de diversão e folia.
O empenho da pesquisadora em trabalhar com esse tema se dá em virtude de uma trajetória de contato e interesse pela tradição carnavalesca paraense. Formada em Medicina e em Música, Dayse se afastou da primeira profissão para seguir exclusivamente a segunda. Na pesquisa de doutoramento, ela quer continuar estudando o carnaval e apresentar uma nova concepção, desvinculada do senso comum.
“Eu gostaria que o carnaval passasse a ser visto como algo fundamental para a nossa cultura. No Sul e Sudeste, são feitos estudos aprofundados de sambas de enredo. Por que não aqui? Por que o carnaval no Pará é visto de forma tão pejorativa e colocado em último plano pelos poderes públicos?”, questiona a autora.
Entre os entrevistados, é consenso que o carnaval paraense está em queda nos últimos anos. Um dos sintomas da crise foi o fato de não ter havido desfile em Belém, em 2017. Apesar disso, a pesquisadora mostra-se otimista afirmando que o carnaval local não deixará de existir.
Ed.141 - Fevereiro e Março de 2018
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